segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Atacar!

Atacar!
Semanalmente o professor-filósofo, além da estafante carga-horária de aulas mal remuneradas, enfrenta uma temível reunião pedagógica chamada HTPC. A estranha sigla, que lhe fora apresentada anos atrás como  “Hora de Trabalho Perdido Coletivamente”, revela a intenção de uma boa alma do passado de fomentar o trabalho pedagógico coletivo. Entretanto, não é o que se passa na Escola Estadual General Costa e Silva, onde trabalha nosso herói.
Com bravura e um tanto de sono, enfrenta o temido HTPC. A saber: o sono provém da digestão iniciada há pouco, o que se impõe como o primeiro dos grandes desafios do professor neste início de tarde – vencê-lo. Lembremos que professores-filósofos detestam acordar cedo, e após seis longas aulas, em salas quentes e apertadas, apinhadas de adolescentes barulhentos, tudo o que o professor deseja é um sofá para recostar, e uma televisão para assistir um fútil programa futebolístico, a fim de esvaziar sua mente das vozes ecoantes dos alunos. O sono seria a sequência natural nessa série de eventos, uma deliciosa retomada dos sonhos noturnos, interrompidos pelo barulho estridente do despertador, horas antes. Entretanto, hoje não os tem, o sofá,  a TV, o sono, os sonhos. Cabe-lhe quarenta minutos para tapar o buraco do estômago, corroído pelo café do intervalo e retornar à escola, onde a reunião se inicia.        
Seus colegas professores marcham rumo à sala de reuniões como soldados marcham em direção ao campo de batalha. A sensação de dever paira no ar, a consciência do soldado numa guerra que não é a dele é evidente: "que diabos estou fazendo aqui???" Aos poucos, cada um se posiciona. A batalha tem início. É conduzida pelas hábeis mãos da coordenadora-pedagógica, uma jovem senhora, disposta e idealista, que angustiada, como os demais, busca respostas para a insolúvel questão: “o que fazer para melhorar o rendimento de nossos alunos?”
Os soldados não respondem imediatamente. A questão paira no ar como um míssil teleguiado que os atingirá a qualquer momento. Enquanto não os acerta, outras informações, os ditos “informes”, são dadas. É talvez a etapa mais enfadonha, e de maior agonia. Todos sabem que o míssil os espreita. Mas têm de ouvir aos comunicados chatíssimos da Diretoria de Ensino. O conteúdo: cursos de formação continuada docente, ou "atividades de perfumaria", como gosta de chamar o professor-filósofo, em que os professores são convocados a partilhar suas experiências mediados por algum especialista de plantão. Fala-se em vão, e todos têm a sensação oculta de que o fazem para matar o tempo. Enfim, matam-no. E embora seja assim, há professores que apreciam tais atividades, pois ao participar, são desobrigados a “dar aula”, o que de certa forma, quebra-lhes a massacrante rotina. Nosso bravo soldado prefere estar junto de seus alunos adolescentes. Com eles aprende mais, e quando não, diverte-se.
Enfim o míssil cai: o que o corpo docente pode fazer para melhorar o rendimento dos alunos? Impõe-se então a segunda grande missão do professor-filósofo: manter-se calado. Depois de tantos anos de escola pública desenvolveu um profundo ceticismo em relação a qualquer tentativa de diálogo. Sabe de cor a fala dos colegas, seus argumentos e refutações. E mesmo que seja novo nesta escola, lá leciona por pouco mais de um ano, a partir de uma indução empírica, concluiu há algumas semanas que todas as escolas se assemelham nesse quesito. Logo, não mais acredita na possibilidade de mudança. Não com essas ideias. Não com essa estrutura.
A irritação do professor-filósofo se dá pelas ideias pedagógicas, se é que podem ser assim chamadas, que são novamente retomadas. Estas, giram em torno de dois verbos, diagnosticados por Foucault há cerca de quarenta anos: vigiar e punir. De acordo com essas diretrizes, a função primordial da escola não é a de ensinar conteúdos, ou desenvolver habilidades discentes, mas sim a de introjetar nos indivíduos a lei. E como se faz isso? Através da reflexão, do amadurecimento, do gradativo crescimento individual, rumo à tão almejada autonomia? Não. A introjeção das leis é realizada pela repressão.
É a ideia “educacional” em voga no mundo ocidental no últimos 300 anos, segundo o referido filósofo. Obviamente, o mundo não é o mesmo, as estruturas, os poderes, e tampouco os sujeitos são os mesmos. Mas permanece a ideia de controle, que se aplica sobre os alunos, primeiramente sob a forma de um calhamaço de regras, ditas "disciplinares". Tudo é controlado: o tempo, pela obsessão com os horários de entrada e saída, das trocas de aula, do intervalo, da realização das atividades pedagógicas, etc...; o espaço, pela determinação de que tais indivíduos devem ser confinados em determinados lugares (salas de aulas, pátio, quadra de esportes, etc), em determinados períodos; os ânimos, pela imposição de determinadas posturas discentes, como o interesse, os bons modos, a vigília contínua, a postura (corpo ereto e prontificado) o não esquecimento do material didático-pedagógico, a disposição para a realização das atividades, o não envolvimento em brigas, etc...; as vestimentas, pela imposição do uso de uniformes, e proibição de certas peças, como bonés, lenços, óculos escuros, blusas de cores berrantes, etc...; além do controle da fome, das necessidades fisiológicas, etc, etc, etc. O que está por trás de tudo isso, segundo o Foucault, é o condicionamento destes indivíduos ao mercado de trabalho, ao capitalismo puro e selvagem, onde permanecerão por 30, 40, 50 anos.  A escola serve como amansadora das feras humanas, a adestradora dos espíritos revoltos, a instituição que preparará a todos para os insuportáveis e infindáveis anos de exploração (voluntária ou obrigatória?) que virão. Diagnóstico tenebroso.
Tendo disso consciência, o professor-filósofo se corrói internamente quando, semanalmente, depara-se com os relatos de seus colegas acerca da atual crise educacional brasileira. As explicações são as mais diversas, e vem em forma de descarrego catártico, com data, hora e local marcados. A maioria dos colegas professores (sim, felizmente, não são todos) purificam-se e eximem-se culpando a família, a progressão continuada, a tecnologia, as drogas, a mídia, a sociedade e a decadência dos valores tradicionais, enfim. Culpados não faltam para explicar o baixo rendimento discente. Mas louvam, e ai de quem ousar discordar!, a tão amada e adorada disciplina. Assim, as ordens da instituição escolar, personalizadas na figura da coordenadora-pedagógica, repetem infindavelmente um discurso disciplinante: temos que respeitar os horários, não podemos permitir que os alunos façam isso ou aquilo. Por fim, redefine-se a atuação do professor, ou ao menos, incumbe-lhe de mais uma função: a de uma espécie de fiscal, e, ou, por quê não, de carcereiro? Numa instituição disciplinar, todos são vigiados. Todos serão punidos. Inclusive os mantenedores da ordem.
Porém, ainda não chegamos na crise. Para muitos, e para o desespero do professor-filósofo, o disciplinamento é a solução. De fato, se houvessem funcionários em número suficiente, e dispostos a dar o sangue, a “vestir a camisa”, (entenda-se, bem remunerados e doutrinados), é possível que esta instituição disciplinar desse o resultado de décadas atrás. Mas e o saber, e o conhecimento? Alguém ousa discuti-lo? Não. A escola que tem como base tão somente a disciplina é como um esqueleto sem músculos, não se sustenta. Todos esquivam-se do míssil do conhecimento. Na escola, lendariamente o lugar do saber, pouco se fala de pedagogia, métodos de ensino, didática, estratégias de aula, modos de avaliação, e o mais importante, os princípios que fundamentariam estas práticas. Com isto, os alunos tornam-se números. O que importa é seu rendimento numérico, os famosos índices, que florescem pífios, por esses, e tantos outros motivos. Aí está de fato a crise: todos concordam que é preciso melhorar a educação, mas não se consegue propor nada que difira de práticas disciplinares. Ó disciplina, deusa redentora! 
Após sobreviver a mais essa batalha campal, a mais esse bombardeamento disciplinar semanal, nosso herói deixa a escola e segue caminhando para sua morada. Pondera sobre a necessidade da disciplina. “Claro, a disciplina por si só não é ruim. Mas ela não pode ser a única função da escola. Ensinar ao aluno como ele deve ser é muito fácil. Controlá-lo também, impor limites. Mas isso basta? Gostaria de ver essa molecada entendendo de fato o sentido das leis, porque elas existem e porque são necessárias. Isto é autonomia.”
Continua sua caminhada, sendo tomado por sentimentos amorfos e contraditórios. Distingue um, o sentimento de tristeza pelos seus colegas professores. Não pelo fato deles legitimarem uma prática inútil e ao mesmo tempo nociva aos alunos, mas principalmente por eles, professores também, não notarem que suas ações têm sido tão improfícuas e vazias, e que juntos, falando a mesma língua, poderiam fazer mais. Reavalia. Parece haver algo maior que ultrapassa a todos. Não tem certeza do que ainda. Não guarda rancor da coordenadora-pedagógica, pois compreende que seu autoritarismo é o único recurso que tem. Acredita que no fundo suas intenções são boas, embora ineficazes, e que tem feito o melhor que pode.
 Mas o pensamento que realmente lhe pega, que lhe aflige, é o do sentido da profissão, diante de previsões futuras nada animadoras. “O que fazer? Escrever livros não muda as coisas. Reações violentas ou suspensão do juízo? Quero contribuir, de alguma forma, mas como? Eureca! Construir mísseis!”


4 comentários:

  1. A escola serve como amansadora das feras humanas, a adestradora dos espíritos revoltos, a instituição que preparará a todos para os insuportáveis e infindáveis anos de exploração (voluntária ou obrigatória?) que virão.
    Adorei essa parte! Alguns de seus contos mi fizeram pensar bastante sobre a escola e os métodos utilizados por ela em geral... Sério obrigado por ter escrito esses contos/crônicas, na minha opinião são ótimos !

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  2. Ah e você avia me dito que iria porta novos contos agora que está de férias... Estou esperando por isso, quero muito que você poste mais se puder.
    Ps: sou sua aluna do primeiro ano

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