Atacar!
Semanalmente
o professor-filósofo, além da estafante carga-horária de aulas mal remuneradas,
enfrenta uma temível reunião pedagógica chamada HTPC. A estranha sigla, que lhe
fora apresentada anos atrás como “Hora
de Trabalho Perdido Coletivamente”, revela a intenção de uma boa alma do
passado de fomentar o trabalho pedagógico coletivo. Entretanto, não é o que se
passa na Escola Estadual General Costa e Silva, onde trabalha nosso herói.
Com bravura
e um tanto de sono, enfrenta o temido HTPC. A saber: o sono provém da digestão
iniciada há pouco, o que se impõe como o primeiro dos grandes desafios do
professor neste início de tarde – vencê-lo. Lembremos que professores-filósofos
detestam acordar cedo, e após seis longas aulas, em salas quentes e apertadas,
apinhadas de adolescentes barulhentos, tudo o que o professor deseja é um sofá
para recostar, e uma televisão para assistir um fútil programa futebolístico, a
fim de esvaziar sua mente das vozes ecoantes dos alunos. O sono seria a sequência
natural nessa série de eventos, uma deliciosa retomada dos sonhos noturnos, interrompidos
pelo barulho estridente do despertador, horas antes. Entretanto, hoje não os
tem, o sofá, a TV, o sono, os sonhos.
Cabe-lhe quarenta minutos para tapar o buraco do estômago, corroído pelo café
do intervalo e retornar à escola, onde a reunião se inicia.
Seus
colegas professores marcham rumo à sala de reuniões como soldados marcham em
direção ao campo de batalha. A sensação de dever paira no ar, a consciência do
soldado numa guerra que não é a dele é evidente: "que diabos estou fazendo
aqui???" Aos poucos, cada um se posiciona. A batalha tem início. É conduzida
pelas hábeis mãos da coordenadora-pedagógica, uma jovem senhora, disposta e
idealista, que angustiada, como os demais, busca respostas para a insolúvel
questão: “o que fazer para melhorar o rendimento de nossos alunos?”
Os soldados
não respondem imediatamente. A questão paira no ar como um míssil teleguiado que os atingirá a qualquer momento. Enquanto não os acerta, outras informações, os ditos “informes”, são
dadas. É talvez a etapa mais enfadonha, e de maior agonia. Todos sabem que o
míssil os espreita. Mas têm de ouvir aos comunicados chatíssimos da Diretoria
de Ensino. O conteúdo: cursos de formação continuada docente, ou "atividades de
perfumaria", como gosta de chamar o professor-filósofo, em que os professores são
convocados a partilhar suas experiências mediados por algum especialista de
plantão. Fala-se em vão, e todos têm a sensação oculta de que o fazem para
matar o tempo. Enfim, matam-no. E embora seja assim, há professores que apreciam tais atividades,
pois ao participar, são desobrigados a “dar aula”, o que de
certa forma, quebra-lhes a massacrante rotina. Nosso bravo soldado prefere
estar junto de seus alunos adolescentes. Com eles aprende mais, e quando não,
diverte-se.
Enfim o míssil
cai: o que o corpo docente pode fazer para melhorar o rendimento dos alunos? Impõe-se
então a segunda grande missão do professor-filósofo: manter-se calado. Depois
de tantos anos de escola pública desenvolveu um profundo ceticismo em relação a
qualquer tentativa de diálogo. Sabe de cor a fala dos colegas, seus argumentos
e refutações. E mesmo que seja novo nesta escola, lá leciona por pouco mais de
um ano, a partir de uma indução empírica, concluiu há algumas semanas que todas as escolas se
assemelham nesse quesito. Logo, não mais acredita na possibilidade de mudança. Não com essas ideias.
Não com essa estrutura.
A irritação
do professor-filósofo se dá pelas ideias pedagógicas, se é que podem ser assim
chamadas, que são novamente retomadas. Estas, giram em torno de dois verbos,
diagnosticados por Foucault há cerca de quarenta anos:
vigiar e punir. De acordo com essas diretrizes, a função primordial da escola
não é a de ensinar conteúdos, ou desenvolver habilidades discentes, mas sim a de
introjetar nos indivíduos a lei. E como se faz isso? Através da reflexão, do
amadurecimento, do gradativo crescimento individual, rumo à tão almejada
autonomia? Não. A introjeção das leis é realizada pela repressão.
É a ideia
“educacional” em voga no mundo ocidental no últimos 300 anos, segundo o referido filósofo. Obviamente, o mundo não é o mesmo, as
estruturas, os poderes, e tampouco os sujeitos são os mesmos. Mas permanece a
ideia de controle, que se aplica sobre os alunos, primeiramente sob a forma de
um calhamaço de regras, ditas "disciplinares". Tudo é controlado: o tempo, pela
obsessão com os horários de entrada e saída, das trocas de aula, do intervalo, da
realização das atividades pedagógicas, etc...; o espaço, pela determinação de
que tais indivíduos devem ser confinados em determinados lugares (salas de
aulas, pátio, quadra de esportes, etc), em determinados períodos; os ânimos, pela imposição de
determinadas posturas discentes, como o interesse, os bons modos, a vigília
contínua, a postura (corpo ereto e prontificado) o não esquecimento do material didático-pedagógico, a disposição para
a realização das atividades, o não
envolvimento em brigas, etc...; as vestimentas, pela imposição do uso de
uniformes, e proibição de certas peças, como bonés, lenços, óculos escuros, blusas de cores berrantes, etc...; além do controle da fome, das necessidades fisiológicas, etc, etc, etc. O que está por trás de tudo isso, segundo o Foucault, é o condicionamento
destes indivíduos ao mercado de trabalho, ao capitalismo puro e selvagem, onde
permanecerão por 30, 40, 50 anos. A
escola serve como amansadora das feras humanas, a adestradora dos
espíritos revoltos, a instituição que preparará a todos para os insuportáveis e
infindáveis anos de exploração (voluntária ou obrigatória?) que virão. Diagnóstico
tenebroso.
Tendo disso consciência, o professor-filósofo se corrói internamente quando, semanalmente, depara-se com os relatos de seus colegas acerca da atual crise educacional
brasileira. As explicações são as mais diversas, e vem em forma de descarrego
catártico, com data, hora e local marcados. A maioria dos colegas professores (sim, felizmente, não são todos) purificam-se e eximem-se culpando a família, a progressão continuada, a
tecnologia, as drogas, a mídia, a sociedade e a decadência dos valores
tradicionais, enfim. Culpados não faltam para explicar o baixo rendimento
discente. Mas louvam, e ai de quem ousar discordar!, a tão amada e adorada
disciplina. Assim, as ordens da instituição escolar, personalizadas na figura
da coordenadora-pedagógica, repetem infindavelmente um discurso disciplinante: temos que respeitar os
horários, não podemos permitir que os alunos façam isso ou aquilo. Por fim, redefine-se
a atuação do professor, ou ao menos, incumbe-lhe de mais uma função: a de uma
espécie de fiscal, e, ou, por quê não, de carcereiro? Numa instituição
disciplinar, todos são vigiados. Todos serão punidos. Inclusive os mantenedores
da ordem.
Porém, ainda não chegamos na crise. Para muitos, e para o desespero do professor-filósofo, o disciplinamento é a
solução. De fato, se houvessem funcionários em número suficiente, e dispostos a
dar o sangue, a “vestir a camisa”, (entenda-se, bem remunerados e doutrinados),
é possível que esta instituição disciplinar desse o resultado de décadas atrás. Mas e o saber, e o conhecimento? Alguém ousa discuti-lo? Não. A escola
que tem como base tão somente a disciplina é como um esqueleto sem músculos, não
se sustenta. Todos
esquivam-se do míssil do conhecimento. Na escola, lendariamente o lugar do
saber, pouco se fala de pedagogia, métodos de ensino, didática, estratégias de
aula, modos de avaliação, e o mais importante, os princípios que fundamentariam
estas práticas. Com isto, os alunos tornam-se números. O que importa é seu
rendimento numérico, os famosos índices, que florescem pífios, por esses, e tantos outros motivos. Aí está de fato a crise: todos concordam que é preciso melhorar a educação, mas não se consegue propor nada que difira de práticas disciplinares. Ó disciplina, deusa redentora!
Após
sobreviver a mais essa batalha campal, a mais esse bombardeamento disciplinar
semanal, nosso herói deixa a escola e segue caminhando para sua morada. Pondera
sobre a necessidade da disciplina. “Claro, a disciplina por si só não é ruim.
Mas ela não pode ser a única função da escola. Ensinar ao aluno como ele deve
ser é muito fácil. Controlá-lo também, impor limites. Mas isso basta? Gostaria de ver essa molecada entendendo de fato o sentido
das leis, porque elas existem e porque são necessárias. Isto é autonomia.”
Continua
sua caminhada, sendo tomado por sentimentos amorfos e contraditórios. Distingue um, o sentimento
de tristeza pelos seus colegas professores. Não pelo fato deles legitimarem uma
prática inútil e ao mesmo tempo nociva aos alunos, mas principalmente por eles,
professores também, não notarem que suas ações têm sido tão improfícuas e
vazias, e que juntos, falando a mesma língua, poderiam fazer mais. Reavalia. Parece haver algo maior que ultrapassa a
todos. Não tem certeza do que ainda. Não guarda rancor da coordenadora-pedagógica,
pois compreende que seu autoritarismo é o único recurso que tem. Acredita que
no fundo suas intenções são boas, embora
ineficazes, e que tem feito o melhor que pode.
Mas o pensamento que realmente lhe pega, que lhe
aflige, é o do sentido da profissão, diante de previsões futuras nada animadoras.
“O que fazer? Escrever livros não muda as coisas. Reações violentas ou suspensão do juízo?
Quero contribuir, de alguma forma, mas como? Eureca! Construir mísseis!”
A escola serve como amansadora das feras humanas, a adestradora dos espíritos revoltos, a instituição que preparará a todos para os insuportáveis e infindáveis anos de exploração (voluntária ou obrigatória?) que virão.
ResponderExcluirAdorei essa parte! Alguns de seus contos mi fizeram pensar bastante sobre a escola e os métodos utilizados por ela em geral... Sério obrigado por ter escrito esses contos/crônicas, na minha opinião são ótimos !
Ah e você avia me dito que iria porta novos contos agora que está de férias... Estou esperando por isso, quero muito que você poste mais se puder.
ResponderExcluirPs: sou sua aluna do primeiro ano
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