quarta-feira, 29 de maio de 2013

Fezes pedagógicas

Fezes pedagógicas


Vocês já perceberam que esta escola é uma merda? Já? E já perceberam que todas as outras escolas, particulares ou públicas também são uma merda? Por que será?
Vocês já se perguntaram que merda vocês estão fazendo aqui, porque vocês têm que fazer esse monte de merda chata, coisas que nunca fariam por vontade própria? E essas merdas de regras idiotas, tipo, “não pode chegar atrasado”, “não pode falar ´merda` na sala”, “não pode mandar a professora ir à merda”, vocês já pensaram por que temos que obedecer essa merda toda?
Quem nunca se sentiu infeliz com a merda da escola que levante a mão! Quem nunca quis mandar a professora de história ir à merda, quem nunca quis enforcar aquela merda de diretora?
E quem nunca ficou puto com aquela velha história de merda “se você não estudar, você nunca será nada na vida!”? Que papo de merda. “Os Ronaldinhos”, mal sabem escrever e hoje estão lá na merda da Europa, morando em castelos, andando de Ferrari, comendo umas minas gostosas (às vezes até uns travecos feios de merda), ganhando milhões de dólares com seu emprego super-divertido “jogador de futebol”. Que merda!  Não precisa estudar pra ser jogador de futebol. Pra que estudar?
E quem nunca ficou puto em ter de acordar cedo pra vir à escola fazer uma merda de prova que só serve pra você tirar uma merda de nota? Daí no final do ano você é promovido e no ano que vem tem de fazer de novo tudo a mesma merda? Não é assim?
E quem nunca teve vontade de cabular, e quem nunca cabulou? Quem não prefere Educação Física àquela merda de aula de Matemática? Quem não odeia aquela merda de aula de química, com aquele monte de elemento que no fundo são tudo um monte de merda mesmo. É, merda! Merda é feita de átomos, né? A professora de química deveria explicar essa merda pra gente.
Porra, e lembra nas primeiras séries, quando tínhamos de fazer fila, rezar o Pai Nosso, cantar o Hino, fazer desenho do dia do índio, fazer sabonete no dia das mães? Quem não odiava aquela merda?!?!
E quem não odeia a hora da chamada? Aquele barulho dos infernos, e aquela besta do professor de inglês gritando nossos números!! Ah, que merda, eu sacaneio ele sempre. Nunca respondo na hora certa, só pra ele ficar puto! É muito chato essa merda toda. E quem não tem vontade de mandar aquela inspetora de merda pro inferno, só vive atazanando.
E quem nunca teve vontade de pular o portão da escola, e quem nunca pulou? Eu pulei. Pulo o portão porque a escola é uma merda, cheia de professores merda, de funcionários merda, de alunos mais merda ainda!
E a merda da minha família não entende por que eu vou mal na escola, “vou mal porque a escola é uma merda” eu digo pra minha mãe. E ela diz: “merda por que, filhinho?” Bem, a escola é quase como um presídio. Você não tem liberdade de nada, só pode obedecer. Não pode ouvir mp3, falar no celular, mandar vídeos de gatinhas peladas, etc, dar porrada nos moleques retardados, pôr bomba no banheiro, xingar aquelas putinhas, não tem bicicletário, não pode andar de skate, tem que fazer umas merdas de desenho praquela bicha do prof. de educação artística, ler aqueles textos idiotas de filosofia, não pode fumar, não pode cabular, ir ao banheiro, sair mais cedo, porra, não fode, que merda!
Ah, e a merda daquela “tiazinha” da secretaria, que praga dos infernos: recebe dinheiro pra fazer um serviço boçal, que até quem nunca foi na escola consegue fazer, e ainda trata mal as pessoas e faz tudo de má vontade, e no final, faz errado! Ahh, que merda!
Sem falar na comida da escola! Ave..... Quase vomito quando como aquela merda de polenta mal-feita, aquele arroz-jesus-me-chama, aquele bife-de-gato-mal-passado! É tudo uma merda, os Paulos Malufs da vida desviam dinheiro e a gente tem que comer merda. Alguém me salve!
A escola é um lugar de merda, não é? Bem, mas pelo menos tem umas gatinhas pra gente xavecar. Pelo menos tem a professora de biologia, que é uma delícia, apesar de chata. Tão novinha, peladinha deve ser linda... por que será que é tão chata? Deve ter um namorado de merda... Deve ser professor também o desgraçado.
Ah, pelo menos ainda nos sobrou a quadra de futebol, que mesmo toda fudida, dá pra gente disputar uns campeonatos. É divertido. Mas é pouco se você pensar direito: passamos boa parte de nossa infância e adolescência num lugar de merda desses... É triste na verdade.
Às vezes fico pensando, será que só as escolas brasileiras é que são uma merda? Acho que não. Nos States, primeiro mundo, a molecada fica tão de saco cheio da merda da escola que de vez em quando leva umas metralhadoras bem fudidonas e sai matando todo mundo. Gente doida, país de merda, não? Aqui no Brasil, que é mais de merda ainda, é diferente, a gente prefere pixar as paredes, quebrar as carteiras, os vidros, xingar as professoras, dar porrada nelas de vez em quando, mas a gente não mata ninguém com metralhadora, né? Isto é tarefa da polícia, não é verdade? Dessa polícia de merda....
E esses polícias de merda estudaram nas mesmas escolas de merda que a gente estuda. Será que tem a ver? E os outros bandidos também estudaram em escolas de merda. Tem a ver? Talvez, tudo tenha a ver, talvez nada. O que eu tenho certeza é de que esta escola é uma merda. Por quê? Porque eu não aprendo nada...  Eu só copio.


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Num futuro próximo...


Num futuro próximo... 

Após registrar a presença de seus alunos em seu diário de classe, o professor-filósofo pediu aos jovens que desligassem e guardassem seus aparelhos celulares em suas mochilas. Alguns poucos o fizeram imediatamente. Outros, a maioria, o fizeram somente depois de serem persuadidos pela argumentação do professor: a simples presença do aparelho sobre a mesa desvia a atenção dos alunos. Os demais, pouquíssimos, precisaram ser ameaçados: “vou te mandar para a diretoria”, ou ainda, “vou pegar o seu celular que só será devolvido a um de seus pais”.
Finalmente a aula foi iniciada. O professor-filósofo retoma a discussão das últimas semanas “a natureza humana segundo Jean-Jacques Rousseau”. Dois minutos depois, nota que um aluno já mexe em seu aparelho celular. O docente decide não agir e esperar para ver o comportamento dos demais. Aos poucos, com em uma epidemia, as mãos dos estudantes são tomadas pelos aparelhos. Em menos de dez minutos, a grande maioria é contaminada.
O professor, então, decide romper seu silêncio e se pronuncia, movido por um sentimento de obrigação: - Vocês realmente não conseguem, não é? Não conseguem ficar dez minutos longe desse miserável aparelho eletrônico?
Há um silêncio imediato, seguido de olhares medrosos. Os alunos sabem que desobedeceram a uma ordem e que podem ser punidos.
Um adendo. Não se assustem, caros leitores. Estes alunos estudam numa escola severa, onde as leis, normas e regras são seguidas com extremo rigor, às vezes até desnecessário. Lá as regras não são apenas um conjunto de palavras impressas numa folha de papel, afixadas em uma das paredes da instituição. Lá regra é regra. Seu não cumprimento é penalizado. Nesta escola, aluno bom é aluno disciplinado.  Dessa forma, os alunos não têm a sensação de que podem tudo, ao contrário. Revoltam-se por não poder nada. Escola certamente anacrônica. Noutra ocasião desenvolverei mais o assunto.
O professor-filósofo tem níveis baixos de obsessão por punição. Curioso por natureza, está mais interessado, por ora, em descobrir os motivos da dependência de seus alunos pelos tais aparelhos de telefone celular. Indaga-os e ouve as mais diversas respostas: “porque celular é legal”, “porque é importante para nos comunicarmos com os outros”, “porque o celular tem várias funções: dá pra ouvir música, assistir vídeos, entrar na internet, mandar mensagens, é da hora”, “porque se minha mãe precisa falar comigo, ela me liga”, entre outras.
Como supunha, nenhum aluno cita as funções de pesquisa, de busca por informações e conhecimento que um aparelho dessa espécie possui. Tampouco é citada sua função de calculadora, que poderia ser valiosa nas aulas de matemática ou física. As respostas restringem-se às funções de comunicação, mas, sobretudo, de entretenimento.
Embora reconheça a importância do lazer na vida dos adolescentes, isso ainda não explica tamanha dependência de um aparelho eletrônico. Por alguns instantes, o professor-filósofo mergulha em pensamentos: “por que tamanha obsessão por um celular? Serão as luzes piscantes, que hipnotizam? Ou a tela, que deve ter algum brilho especial que vicia, será possível? Será a câmera fotográfica? Ou a sensação de pertencimento ao grupo, gerada pelo aparelho? Ou ainda o status: eu tenho um aparelho, sou legal. Quanto mais caro meu celular, mais legal eu sou? Ou quem sabe a intimidade com aparelhos dessa espécie, essa geração passou mais tempo com um celular do que, provavelmente, com seus pais. Será isso?”
Eis que de repente, atordoado por suas meditações e sem pensar nas conseqüências de suas palavras, o mestre profere a infausta afirmação: - Eu não tenho um aparelho celular.
Breves segundos de silêncio. Os alunos se entreolham, apavorados, terrificados. Surge um ânsia instantânea, coletiva:  “Como?? Como pode?”, pensam, uniformemente.
A quem não presenciou a cena é praticamente impossível descrever o que se sucedeu. Revolta, gritos, caos, desordem, indignação. Harmonicamente, pensavam: “como pôde a natureza ter engendrado ser tão excêntrico? Não há mais limites para a extravagância humana? Como ousa, uma pessoa, um ser humano de carne e osso, sem celular? Impossível.”
E o professor, pego de surpresa, tenta se explicar. Utiliza seus melhores argumentos, mas ninguém o ouve. Vocifera, esbraveja, e quanto mais tenta, mais ensandecida fica a turba. Por fim, bate o sinal. A aula termina. Sai da sala aliviado por ainda estar vivo.
No caminho para casa, os rostos de repulsa voltavam-lhe à mente, a todo instante. Não conseguia esquecê-los. Brota-lhe, de repente, uma estranha ideia: escrever os seus argumentos contrários ao celular e lê-los para a turma na próxima aula. “Vou mostrar para essa molecada que a vida é muito mais que um aparelho eletrônico”, pensou.
Assim, elaborou uma lista com suas razões, intitulada: 27 motivos para não se ter um celular. Fez o melhor que pôde, utilizando a linguagem dos jovens para que o entendessem. E na semana seguinte, quando retornou àquela turma, retomou a discussão. Sabichão, sacou de sua pasta seu digníssimo texto, que leu em voz alta para os jovens.

27 motivos para não se ter um celular.

1º Você não gastará dinheiro com um aparelho. E não gastará dinheiro com outro aparelho daqui há alguns meses, quando o seu atual quebrar ou se tornar ultrapassado.
2º Você não gastará dinheiro com planos mirabolantes das empresas telefônicas.
3º Você não contribuirá com as empresas telefônicas, claramente desonestas, que prometem planos mirabolantes e não cumprem.
4º Você não ficará nervoso após horas e horas de espera tentando cancelar seus planos mirabolantes.
5º Você não terá que desligar o seu celular ao entrar no cinema, teatro, etc..
6º Você não atrapalhará as pessoas no cinema, teatro, etc, por ter se esquecido de desligar o seu celular.
7º Você não atrapalhará a aula atendendo aquela ligação “importantíssima”.
8º Você não incomodará o sossego de ninguém no transporte público por discutir a relação com seu/sua amado(a) via celular.
9º Você não incomodará ninguém no transporte público, ou mesmo em outros espaços públicos, ouvindo no alto falante de seu celular aquela música que só você acha legal.
10º Nunca ninguém ficará zangado com você pelo fato de você ter esquecido o celular desligado.
11º Você nunca precisará procurar um lugar para recarregar a bateria do seu celular.
12º Você não precisará procurar um lugar para por crédito no seu celular, nem deixará as pessoas da fila da lotérica, da farmácia, da PQP nervosas pela demora na compra dos benditos créditos de celular.
13º Você nunca colocará a sua vida, e as de outras pessoas, em risco, ao dirigir falando no celular, ou dirigir escrevendo mensagens SMS.
14º Você nunca ficará preocupado se alguém “está de olho” no seu celular “novinho”.
15º Você nunca ficará preocupado em perder seu celular “novinho”.
16º Você não sofrerá assaltos por conta do seu celular. Sua vida não estará em risco por conta desse ridículo aparelho eletrônico.
17º Você nunca ficará desesperado se o seu aparelho for furtado ou perdido.
18º Você nunca ficará desesperado por ter perdido TODOS os milhares de contatos da agenda do seu celular roubado ou perdido.
19º Você nunca vai pisar num cocô de cachorro porque estava andando enquanto escrevia  uma mensagem SMS (e nenhum outro acidente idiota deste tipo, vai dizer que não acontece?).
20º Você não ficará ansioso se a bateria do seu celular estiver acabando e você estiver esperando uma ligação importante.
21º Você nunca se julgará um “idiota” por ter ido viajar e ter esquecido o carregador da bateria do seu celular.
22º Você não estará sempre “disponível”, isto é, ligado o tempo todo ao resto do mundo (privacidade é bom de vez em quando).
23º Você nunca se sentirá um “otário” por ter comprado um aparelho que não funciona conforme o prometido. Nem vai perder tempo tentando aprender a utilizar aquelas funções mirabolantes do seu celular “novinho”.
24º Você nunca irá usar seu celular para tirar aquelas fotos ridículas na frente do espelho, em que se faz biquinho, ou qualquer outro tipo de pose idiota, que só você acha sexy.
25º Você nunca irá deixar a pessoa com quem você está conversando te esperando enquanto você responde aquele SMS “importantíssimo”.
26º Você nunca deixará de prestar atenção em algo importante por estar com os olhos grudados no seu celular.
27º Você nunca se viciará no seu celular, ou nas tranqueiras coloridas e barulhentas que ele pode te proporcionar. Enfim, você terá mais tempo para viver.

Ao final da leitura, a maioria dos alunos estava com cara de tédio. Alguns bocejavam, outros checavam seu celular. Outros olhavam para o vazio, pensando em como seria estar em casa, desfrutando de sua cama e de seu travesseiro. Apenas uma garota, uma quieta porém perspicaz menina da primeira fila, olhava com astúcia para o mestre.
A princípio, o professor-filósofo não entendeu a reação da classe. Tinha certeza que seu texto criaria novo tumulto, revoltas ainda mais tempestuosas. Ele até tentou estimular a turma, provocando-os com novos questionamentos sobre o assunto. Hoje estava pronto para briga, tinha certeza que ninguém o venceria. Em vão. “Venceu” por W.O.. 
No caminho de volta para casa, pensando em toda a situação, concluiu: “essa é a geração do tédio, e não do celular. Não se motivam por ideias, não se apegam racionalmente às coisas, são basicamente seres pulsionais. Vão da euforia à indiferença, da inação à hiperatividade velozmente. Mas nada lhes pertence. Surpreendem-se com o diferente, é verdade, revoltam-se até. Mas é tudo instintivo, tudo efêmero e descartável. Só o tédio lhes é visceral.” Então, lembrou do rosto da garota quieta e perspicaz. Seu olhar tinha um brilho de inconformidade, uma luz que irradiava discórdia, ainda que contidamente. Por fim, o professor-filósofo sorriu. “Nem tudo está perdido”.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Seu Seleno


Seu Seleno

     O assunto mais recorrente na sala dos professores, durante os intervalos principalmente, é o comportamento dos alunos. Fala-se sobre indisciplina, falta de educação e desinteresse discentes. Culpabiliza-se, geralmente, a “família”, instituição julgada como entidade metafísica, universal, onisciente e onipotente. Atribui-se a ela, ou melhor, à “recente” perda de seus poderes divinos, o fracasso dos alunos, tanto do ponto de vista pedagógico, quanto do comportamental. Contudo esta não é a única explicação. Também os alunos, seres dissimulados, senhores de si, indivíduos maduros e responsáveis, que estão na escola sei lá fazendo o que, diante de tal nível de desenvolvimento, são responsabilizados pelo seu fracasso. Em resumo, a lógica do sucesso e do fracasso impera no árido solo da pedagogia brasileira. 
Mas este não era o caso da Escola Estadual Prof. Judas Iscariotes de Oliveira. Pelo menos não nas últimas semanas. A recente chegada de seu Seleno, funcionário da Diretoria de Ensino designado para a função de Agente de Organização Escolar, mexia com os instintos especulativos do corpo docente. Os motivos: seu Seleno não tinha “perfil” para trabalhar como inspetor de alunos. 
Chegaram a essa conclusão logo em sua primeira semana de trabalho. Nos três primeiros dias, seu Seleno chegou atrasado. Deveria apresentar-se na escola às 6:40, arrumar-se rapidamente, e abrir o portão para a entrada dos alunos, às 6:50. No primeiro dia chegou às 7 horas, atrasando a entrada. No segundo dia, conseguiu chegar às 6:50, o que também descumpria as ordens da diretora. No terceiro, voltou a chegar às 7 horas.
A diretora, insatisfeita com a situação, sabia que se seu Seleno não abrisse o portão no horário, os alunos entrariam atrasados, o que prejudicaria a primeira aula da manhã. A escola não dispunha de outro funcionário para cumprir essa função, seu Seleno vinha, especificamente, para ficar no lugar de dona Aurora, antiga inspetora que acabara de se aposentar. Assim, a diretora chamou o recém-chegado para uma séria conversa. Após a exposição dos fatos e de suas conseqüências, que seu Seleno mal ouviu, pois pensava no jogo de futebol que ocorreria naquela quarta, à noite, a fina senhora exclamou: – Portanto, se você voltar a se atrasar, eu vou até a Diretoria de Ensino pedir a cessação da sua designação! – A rispidez da voz e a fúria no olhar da diretora trouxeram seu Seleno de volta à realidade. Não se explicou, apenas respondeu: - Dona Diretora, isso não vai voltar a acontecer!
Seu Seleno era lento no andar, seus pés sexagenários doíam quando caminhava, atrapalhando a agilidade que outrora tivera. Gabava-se, inclusive, de ter sido “jogador” de um clube do interior de São Paulo na juventude. Um “beque dos bons” dizia, que teria até mesmo enfrentado Pelé num jogo válido pelo Campeonato Paulista, no início dos anos 70. Além da dor, e das míticas histórias contadas ao colegas de bar, havia sua condição financeira precária e o descaso consigo próprio. Ambos impediam que o homem procurasse um médico para examiná-lo. Morava só, numa modesta casinha na periferia de São Paulo, há cerca de três quilômetros da escola em questão. Não tinha amigos, apenas “conhecidos” na região.
  Decidiu que na manhã seguinte pegaria um ônibus ao invés de caminhar, mesmo que isso ocasionasse importante diferença em seus rendimentos mensais. Mas ponderou: “melhor ir de ônibus e continuar trabalhando, do que perder o trabalho e ficar mais fodido ainda de grana. É, melhor mesmo...”. Por fim, passou a chegar no horário, atrasando-se mais raramente.
Os atrasos não eram os únicos obstáculos de seu Seleno na função. Todos consideravam-no figura repugnante. Primeiro pelo aspecto físico: um homem de sessenta e poucos anos, banguela, careca, de olhos ligeiramente esbugalhados e volumosa barriga. A isso, acrescente-se roupas sujas, fedidas e rasgadas, como uma camisa do Corinthians comprada provavelmente num camelô na década de 90, e o odor quase natural de cachaça que exalava, gerado não só pelas doses do desjejum, como também pelos grandes goles ingeridos à noite, antes de cair no sono. A idade, o cansaço e sobretudo as noites de pouco sono davam-lhe grandes olheiras, que contribuíam para sua feiúra.
Além do aspecto, também julgavam-lhe mal pelo modo peculiar no trato com as pessoas. Por exemplo, aos alunos que dele zombavam, respondia com - Vai pra puta que pariu, filho de uma quenga véia! – A frase, repetida incansavelmente com voz ligeiramente rouca e vacilante, revelava um estado crescente de senilidade, o que divertia os alunos mais sádicos. Estes, engajavam-se em criar novos apelidos para o velho. – Esse é da hora, rárárá, o véio doidera vai ficar muito puto!
Tratava distintamente professores e professoras. Com os homens, esforçava-se para ser amigável, contando-lhes piadas e “causos” antigos. Com as professoras, era galante e gentil, - É assim que a gente tratava as mulheres antigamente – contava aos colegas do sexo masculino. Por vezes, e preferencialmente às professoras mais velhas, soltava alguns elogios, que eram imediatamente rechaçados com olhares de reprovação, “Se toca, velho fedido”, pensavam algumas.
Mas seu Seleno não tinha intenção de amizade, amor ou sexo. Seguia um protocolo de educação básica que aprendera há algumas dezenas de anos. A escolha pelas mais velhas, por exemplo, baseava-se na crença de que elas entenderiam este protocolo. Tinha uma mente antiga, valores e costumes antigos.
Não se incomodava com os juízos negativos dos colegas de trabalho. A propósito, fechara-se de tal modo para essa espécie de crítica que elas simplesmente pareciam não existir. Era, por esse e outros motivos, ser extremamente alegre, sorridente. Sempre a cantarolar melodias de Nelson Gonçalves e Ataulfo Alves. Divertia a criançada da escola dançando comicamente enquanto entoava as canções. Não partilhava daquilo que costumeiramente chamamos de “bom senso”, ou ainda, “senso de ridículo”. Há tempos abandonou a capacidade de se auto-envergonhar, conquista potencializada pelo alcoolismo. 
Como dito acima, transformou-o em pessoa mais comentada na sala dos professores, durante o intervalo. As professoras, em especial, riam de seu jeito extravagante, deploravam seu fedor, suas roupas sujas e rasgadas, reclamavam de seus galanteios e dos xingamentos proferidos aos alunos. Especulavam se não tinha esposa, se morava sozinho, se tinha parentes próximos, enfim, algo que se possa chamar de família. - Como uma pessoa chega a tal estágio? – Indaga uma. – Excesso de pinga – responde outra.
Os professores são mais complacentes. Há alguns que até simpatizam com seu Seleno, mas não manifestam publicamente esse afeto. Comentam suas piadas, seus jargões, seus “causos”.  Chegaram inclusive a pesquisar nos sites futebolísticos da internet, se seu Seleno fora realmente jogador de futebol. Nada encontraram.
O que ninguém sabe, ou desconfia, é que Seleno foi casado, e teve um filha, falecida aos 10 anos, vítima de um tumor no cérebro. A perda da garota, considerada por tempos, pelo pai, alegria e razão de sua vida, deixou uma marca incurável em sua alma. Tentou afogar essa perda com o álcool. Nada feito. Perdeu a esposa, sucessivos empregos, a dignidade. Por anos, viveu nas ruas, a esmo, perambulando. Tateava um novo sentido para sua mal-tratada existência, mas esbarrava sempre na memória da filha perdida. Abandonado pelos amigos, pelos poucos parentes próximos, seu Seleno passou a mendigar, ou a fazer serviços braçais em troca de cachaça. Pouco comia. Sempre se embriagava. Mas a filha morta nunca voltava. Por fim, entendeu que a morte é eterna.
Aos poucos e muito lentamente, se refez. Tijolo por tijolo, construiu uma poderosa muralha mental contra tudo que lhe era nocivo. Nada mais o afetava, a não ser as crianças, que de um modo geral, encarnavam a figura da filha. Nunca foi capaz de se imunizar contra os choros e os sorrisos, os insultos e elogios, as tristezas e alegrias das crianças. Através delas, sentia-se ligado à querida filha perdida. 
Seu Seleno se reergueu. Demorou, mas acabou por encontrar paz interior e a vontade de seguir a vida. Decidiu que até o fim trabalharia em escolas, para estar sempre próximo às crianças. Conseguiu trabalho numa Diretoria de Ensino, contratado como ajudante de serviços gerais. Prestava serviços de manutenção dentro das escolas. Durante alguns anos, desempenhou bem a função. Até que prestou concurso para agente de organização escolar. Ficou mal-classificado, mas acabou sendo chamado, devido ao excesso de vagas e à rotatividade das pessoas no cargo, talvez devido à natureza do trabalho (vigiar os alunos) e ao salário miserável. 
Seu Seleno passou por diversas escolas, mas seu temperamento desleixado não o permitia ficar por muito tempo em nenhuma delas. As pessoas se irritavam, e ele era “devolvido” para a Diretoria de Ensino, que o empurrava para alguma outra escola que reclamava por falta de funcionários, fato bastante comum nas escolas paulistas. Acabou passando um tempo mais prolongado nessa escola, pois, ainda que fosse desmazelado, cumpria sua função.
Nunca esqueceu sua filha, logicamente, mas voltou a ser o espírito alegre de tempos antigos. E apesar dos pesares, é possivelmente a pessoa mais feliz com seu trabalho lá. O baixo salário não é tão relevante. E ao contrário dos professores, dos demais funcionários da escola, da direção e até mesmo dos próprios alunos, sente prazer infindável em contemplar o sorriso das crianças, que, como pensa, é “a coisa mais pura e bonita do universo”. É o que lhe vale. 

terça-feira, 7 de maio de 2013

Qual é o sentido disso?


Qual é o sentido disso?


O barulho irritante do despertador acorda o professor-filósofo para mais um dia de trabalho. Trágica rotina. Professores-filósofos detestam acordar cedo. Daria tudo para continuar dormindo até às dez, quando os raios solares penetrariam as frestas da janela de seu quarto, acordando-o naturalmente.
Mas levanta-se, morosamente, cambaleante, e sem pensar. Veste-se e abandona o quarto o mais rápido possível, para não ceder à tentação do sono. Come sem vontade, fazendo enorme esforço mental para resgatar as agradáveis imagens do sonho há pouco interrompido. Tenta juntar os fragmentos, atribuir algum sentido àquelas visões estilhaçadas de suas experiências passadas. Acaba distraindo-se com a sensação arrebatadora de sono. Deixa a casa. 
Vai caminhando ao trabalho, refletindo sobre a existência, seus projetos e conquistas. Em sua mente toca uma canção antiga, acolhedora e melancólica, que dá tom ao seu estado de ânimo. - Only the lonely, only the lonely! - repete seguidamente.  Aperta o passo para não se atrasar.
No portão da escola, encontra a coordenadora-pedagógica. Sua voz rouca grita aos alunos: - Mais rápido, andem mais rápido que o portão vai fechar! - Cumprimentam-se com certa afabilidade.
Na sala dos professores pega o seu material: diários, livros, giz. Fala “bom dia” a alguns, ignora outros sem motivo, a não ser por sua timidez inata.
Olha ao redor, a sala é ampla, mas os professores estão espalhados, embora agrupados estranhamente, por idade, gênero e disciplina que lecionam. Conversam sobre banalidades, como os acontecimentos do fim de semana, os resultados do futebol, ou a entrevista da celebridade x no programa televisivo y. Assoberbado, evita participar de conversas dessa natureza. “Que gente besta”, pensa.
O seu caminhar em direção à sala de aula é atrapalhado por diversos alunos que brincam, se batendo e se empurram, gritando e gargalhando. Isto traz lembranças imediatas ao professor-filósofo, lembranças de seus tempos de juventude. Acaba por considerar seus alunos exageradamente infantis.“Será que quando eu era moleque eu era tão bobo assim e não sabia? Todo mundo já foi bobo um dia. Mas eu não era bobo assim. Nem fudendo!”.
Na sala de aula, a rotina diária se repete. - Pessoal, atenção à chamada, silêncio por favor. – A seguir, números ditos em voz alta misturam-se a demais vozes que não cessam, bocas que não se calam, ruídos que não findam. “Há sentido nessa merda? Por que continuar com isso? Não dá pra ser diferente”, pensa, enquanto continua chamando os alunos e registrando a presença no diário. Terminada a “chamada” a aula se inicia.
O plano de aula é o de entregar as provas corrigidas, mostrar quais as respostas certas e porque os alunos erraram tantas questões. Pretende ainda discutir mais aprofundadamente os resultados e orientá-los para que o mesmo não se repita no futuro próximo.
Entretanto, tem consciência de que esse plano de aula não faz sentido. O motivo principal: a prova foi aplicada há mais de um mês, e os alunos já não lembram mais do texto, tampouco das questões. O professor justifica-se propondo um problema matemático aos jovens: - Tenho mais de quatrocentos alunos. Levo cerca de cinco minutos para corrigir cada prova. Qual é o tempo total, em horas, para a correção?
Alguns quebram a cabeça, utilizando seus idolatrados aparelhos eletrônicos inúteis para resolver a questão. O professor-filósofo zomba deles: -Vocês são escravos de objetos fúteis. É a mente que opera os instrumentos e não o seu contrário. Primeiro desenvolvam suas mentes. Depois, utilizem seus instrumentos. - O professor-filósofo tem certeza de que os jovens não entenderam sua crítica, julgando-a como um simples sermão, ou pior, reles rabugice de velho. Mas dá de ombros.
Por fim, chegam ao resultado: cerca de trinta e três horas foram necessárias para a correção dessas provas. O professor termina seu argumento, com mais uma equação matemática: - Considerando que o governo me paga apenas duas horas semanais para eu trabalhar em casa, em quantas semanas eu deveria ter que devolver essas provas corrigidas para vocês, sem ter de trabalhar de graça? – Agora as respostas vêm com maior rapidez. O professor-filósofo resmunga mais algumas palavras contra o sistema de ensino. Mas logo para, quando percebe que os alunos não estão interessados em saber disso.
A prova aplicada há um mês consistia em cinco questões de interpretação sobre trecho da Ética a Nicômaco de Aristóteles. O texto fora lido e relido em sala de aula, interpretado minuciosamente em trabalho coletivo entre os jovens e o professor-filósofo, e para surpresa do mestre, os resultados da avaliação demonstram que o texto não havia sido compreendido pela maioria dos alunos. Cerca de quarenta por cento dos alunos tiveram notas abaixo da média. Cinqüenta por cento tiveram notas iguais ou um ponto superior à média, que é cinco. E somente dez por cento, isto é, quatro alunos, tiveram notas consideradas satisfatórias pelo professor.
Enquanto mostrava quais eram as respostas corretas para as questões, e tentava encontrar os motivos para tantos erros, sentia no olhar dos jovens desdém, desprezo, uma certa arrogância. “Isso não faz sentido”, pensava. “O que faz então? Nada faz sentido a esses garotos. A não ser celulares e outras quinquilharias eletrônicas, a aparência física, o futebol e a música a outras. E de nada adianta desconstruir esse jeito de ser: adolescentes dificilmente admiram-se com a consciência de sua idiotice”.
Apesar do desinteresse pelas “respostas certas”, os jovens esperam avidamente pelas provas corrigidas. Não porque pretendiam reavaliar o que não aprenderam, mas pela expectativa de saber a sua nota, valor numérico gravado geralmente no canto superior direito da folha de prova com caneta esferográfica vermelha. Por alguns segundos o professor tenta definir mentalmente o conceito de “nota”: “símbolo, alegoria, metáfora, que designa a ‘virtude’ de um aluno em desempenhar uma tarefa por intermédio de um valor numérico dado dentro de uma escala de zero a dez”.
O professor-filósofo pensa na ineficácia desse método, pois estimula tão somente a valoração por intermédio de escalas numéricas. “Desse jeito as pessoas têm um valor, de acordo com suas habilidades em desempenhar tarefas. Em última análise, esse sistema não se difere do sistema capitalista, pois acaba por determinar que os seres humanos diferenciam-se de acordo com o valor de mercado que têm. Produzimos objetos para nosso consumo, mas no fundo, também somos objetos de consumo, etiquetados com um preço, o que alguns chamam de salário”.
Todo esse devaneio se dá durante o processo mecânico e interminável de explicar os argumentos de Aristóteles presentes no texto. Tudo se repete na próxima aula, e de novo, nas demais aulas do dia, seis no total. Pouco muda entre uma turma e outra. Alguns alunos são mais simpáticos e falastrões, outros menos. Mas a dinâmica, as relações, o desprezo pelo conhecimento e ânsia pelos resultados é a mesma.
O professor-filósofo deixa a escola extenuado. Ao pisar fora do edifício, o sono retorna, de imediato. A fome, até então adormecida, acorda para revirar-lhe o estômago. Only the lonely volta a tocar em sua mente, e uma questão insiste em atormentar-lhe: “faz sentido continuar com isso?”.

Sejam bem-vindos!!

Olá. Meu nome é Isaac Vieira da Silva, tenho 31 anos e sou professor de filosofia da rede estadual de São Paulo. Atualmente, faço mestrado em filosofia na USP, onde estudo a obra pictórica de Jheronimus Bosch. Além disso, toco numa banda de rock chamada Traumas e sou casado com a Michelle, minha amada e querida companheira. Temos dois filhos: uma canina chamada Layla e um felino chamado Sig.
Desde que comecei a dar aula na escola pública, em agosto de 2005, tive vontade de escrever textos narrando minhas experiências. A escola, com suas práticas, seus habitantes, e o mais importante, com todo o conhecimento que ela produz (ou deveria produzir), sempre me encantou. Tanto que nunca consegui me desligar dela... Há quase trinta anos freqüento diariamente instituições de ensino, em todos os seus níveis. 
Como dizia, sinto uma necessidade crescente, quase que uma obrigação, de narrar, pensar, discutir a escola e suas práticas. Mas não com o enfoque acadêmico, rigoroso e engessado. Quero mostrar as vísceras da escola e de suas personagens, suas contradições, angústias, anseios, dar voz a professores e alunos, denunciar práticas abusivas, louvar ações positivas. Enfim, objetivo refletir sobre as práticas de ensino, indagar sobre os métodos de avaliação, mas sem esquecer do caráter humano, dos sentimentos e afetos que permeiam as instituições escolares. Para tal, o farei através de narrações, nunca dissertações, misturando realidade e ficção, experiências verídicas e inventadas, reflexões próprias e de outros...
Tentarei escrever ao menos um texto por semana, no contra-turno dos meus estudos e trabalho, algo como um hobby sério. É também uma tentativa minha de por fim a esse vício alienante chamado facebook.
Bom, divirtam-se.
Aguardo críticas.
Obrigado.