Involução
Hoje, meio que ao acaso, e sem
saber onde me enfiava, acabei entrando no arquivo-morto da escola que leciono.
Meus alunos ensaiavam no teatro a peça que apresentarão para a minha
disciplina, no final do bimestre. Ouvi vozes que vinham do corredor. Vi uma
porta entreaberta adiante, resolvi verificar. Professores têm que estar sempre em
estado de alerta. Adolescentes costumam fazer merda.
De fato, dois alunos vasculhavam
prontuários de antigos estudantes. Ao invés de repreendê-los, passei a fazer o
mesmo. Curiosidade por coisas antigas é muito salutar, e a minha já havia
atingido níveis estratosféricos.
Não conheço a história da Escola
Fernão Dias Paes. Pelo pouco que sei, ela foi inaugurada em 1947 e teve
professores famosos, como o ex-presidente Fernando Henrique e sua falecida
esposa, Ruth Cardoso. Nas três primeiras décadas, era uma escola da elite. A
sala, grande, lúgubre, empoeirada, me proporcionou uma breve crise de rinite,
provavelmente por conta dos bilhões e zilhões de ácaros adentrando as minhas
sensíveis narinas. Dei de ombros. Estava absorto pela viagem psíquico-temporal
que aqueles arquivos me proporcionavam. Conheci pessoas, algumas provavelmente
falecidas, contemplei suas fotos, que traziam penteados e aparência datada, e me pus a imaginar: estudantes,
docentes, o prédio da escola, a Avenida Pedroso de Morais, o bairro de
Pinheiros, a cidade de São Paulo, o Brasil, a vida. Como as coisas haviam
mudado!
Os papeis embolorados e as
fotografias em preto e branco me trouxeram uma nostalgia de algo que não vivi.
Ok, nada de anormal. Fato é que ter uma consciência nos permite transitar por
sensações, imagens e percepções que se ligam aos afetos, invariavelmente. E em segundos, vamos da nostalgia ao ódio, da
saudade do não vivido à angústia da imanência. Eu explico. Nos anos 60, a
escola se chamava Instituto Fernão Dias Paes, e oferecia, além do "ginasial"
e "colegial", cursos profissionalizantes, como magistério e administração.
A estupefação se deveu à grade curricular. Nos cursos secundários, eram
ministradas aulas de grego, latim, francês, espanhol, filosofia, sociologia,
psicologia, desenho, canto, além das disciplinas tradicionais (português,
matemática etc) distribuídas nos programas dos cursos variados.
Ao comparar com um prontuário de
um aluno de 1991, a raiva se transmutou em desencanto. Em menos de 30 anos, restaram
à grade apenas as disciplinas hoje consagradas. Sim, nos anos 60, quem podia
frequentar a escola tinha, pelos menos em termos curriculares, uma formação
melhor que a de 1985 em diante, e ao que indicam as ações do nefasto Temer,
melhor que a das próximas décadas.
É preciso ressaltar e ressaltar. A
ditadura militar fez um tremendo mal a este país. A partir da Constituição de
1988, avançamos na universalização do ensino, mas regredimos, deveras, na
abrangência de nosso currículo e/por conseguinte na qualidade da educação. Desse
momento adiante, nossos gestores passaram a ver a área como gasto e despesa.
Teria sido diferente no passado? De todo modo, é evidente que o neoliberalismo transformou
a educação em mercadoria. Os sistemas de ensino, como Objetivo, Anglo, Etapa,
que têm sua didática direcionada à sua única finalidade, a aprovação no
vestibular, comprovam isso.
Os governos subsequentes foram
pouco eficazes no necessário, como todos atestam, desenvolvimento da educação,
sobretudo a educação básica. Os mais efetivos foram os governos do PT, que criaram
programas para facilitar o acesso às universidades privadas, como foi anunciado
nas últimas campanhas presidenciais. Entretanto, pouco produziram para a
transformação do absurdo e excludente sistema de vestibular das universidades públicas.
É justo assertar: os institutos (muitos com cursos de ensino médio e técnico) e
universidades federais se multiplicaram, e o acesso a quem nunca teve acesso,
foi facilitado pelos variados programas de cotas, embora as estatísticas não
sejam tão esplendorosas como mostram as campanhas políticas. No entanto, as medidas efetivas do governo do PT para garantir a melhoria da qualidade da
escola pública e básica tenham sido escassas e falhas. Houve aumento do repasse, dinheiro mesmo, para as escolas.
É verdade. Houve a garantia das disciplinas de filosofia e sociologia, importante conquista, mas longe de ser suficiente para modificar o decadente sistema de
ensino. A “lei do piso”, que visava restituir algo da dignidade do docente,
entrou em vigor, mas sem vigor. Uma lei federal descumprida por dezenas de
estados não pode ser considerada como uma melhoria efetiva. Além do que as
propostas de valorização salarial dos docentes apresentaram resultados pífios.
Assim, o professor segue
desprestigiado socialmente, é desrespeitado por alunos, pais, colegas, e todos acima hierarquicamente, tido como o coitado que escolheu a
profissão por falta de oportunidades mais rentáveis, ou ainda como o principal culpado
pelo acentuado declínio do ensino. É o que dizem por aí, o senso comum, ou os especialistas de revistas chulas, como a Veja, Época, Istoé. Culpabiliza-se o indivíduo e não o sistema.
Isso é parte do ideário conservador, ou como preferirem, liberal, neoliberal,
capitalista, reacionário, tradicional, a escolher. Com a morte do pensamento, semelhanças
transformam-se em igualdade.
Claro. Não podemos nos iludir. A
diversidade no currículo não é garantia de qualidade no ensino. É custoso, no
entanto, acreditar que o acesso ao saber é oferecido ou não pelo Estado, sem a
consulta e/ou aprovação da população, a principal interessada. O diálogo sobre a educação segue de um modismo a outro, repleto de sensos comuns e sem nenhuma profundidade, a não ser, isoladamentee, nas reflexões de acadêmicos, muitas vezes mal-interpretados ideologicamente. Pensar requer esforço. Assim, seguimos contemplando transformações lentas e ineficazes, que revelam um imenso vazio de nossos intelectos. Consequência da debilidade educacional brasileira?
Em tempos de surdez, muitos ainda
não conseguiram entender que a defesa da educação não é só mais um episódio da
contemporânea, irracional e artificial guerra ideológica travada nos campos de
batalha, sobretudo os virtuais. É claro e evidente: educação, cultura e
conhecimento são fundamentais para a vida.
Pensemos, ao invés de resmungar.