quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Involução

Involução

Hoje, meio que ao acaso, e sem saber onde me enfiava, acabei entrando no arquivo-morto da escola que leciono. Meus alunos ensaiavam no teatro a peça que apresentarão para a minha disciplina, no final do bimestre. Ouvi vozes que vinham do corredor. Vi uma porta entreaberta adiante, resolvi verificar. Professores têm que estar sempre em estado de alerta. Adolescentes costumam fazer merda.

De fato, dois alunos vasculhavam prontuários de antigos estudantes. Ao invés de repreendê-los, passei a fazer o mesmo. Curiosidade por coisas antigas é muito salutar, e a minha já havia atingido níveis estratosféricos.

Não conheço a história da Escola Fernão Dias Paes. Pelo pouco que sei, ela foi inaugurada em 1947 e teve professores famosos, como o ex-presidente Fernando Henrique e sua falecida esposa, Ruth Cardoso. Nas três primeiras décadas, era uma escola da elite. A sala, grande, lúgubre, empoeirada, me proporcionou uma breve crise de rinite, provavelmente por conta dos bilhões e zilhões de ácaros adentrando as minhas sensíveis narinas. Dei de ombros. Estava absorto pela viagem psíquico-temporal que aqueles arquivos me proporcionavam. Conheci pessoas, algumas provavelmente falecidas, contemplei suas fotos, que traziam penteados e aparência datada, e me pus a imaginar: estudantes, docentes, o prédio da escola, a Avenida Pedroso de Morais, o bairro de Pinheiros, a cidade de São Paulo, o Brasil, a vida. Como as coisas haviam mudado!



Os papeis embolorados e as fotografias em preto e branco me trouxeram uma nostalgia de algo que não vivi. Ok, nada de anormal. Fato é que ter uma consciência nos permite transitar por sensações, imagens e percepções que se ligam aos afetos, invariavelmente.  E em segundos, vamos da nostalgia ao ódio, da saudade do não vivido à angústia da imanência. Eu explico. Nos anos 60, a escola se chamava Instituto Fernão Dias Paes, e oferecia, além do "ginasial" e "colegial", cursos profissionalizantes, como magistério e administração. A estupefação se deveu à grade curricular. Nos cursos secundários, eram ministradas aulas de grego, latim, francês, espanhol, filosofia, sociologia, psicologia, desenho, canto, além das disciplinas tradicionais (português, matemática etc) distribuídas nos programas dos cursos variados.



Ao comparar com um prontuário de um aluno de 1991, a raiva se transmutou em desencanto. Em menos de 30 anos, restaram à grade apenas as disciplinas hoje consagradas. Sim, nos anos 60, quem podia frequentar a escola tinha, pelos menos em termos curriculares, uma formação melhor que a de 1985 em diante, e ao que indicam as ações do nefasto Temer, melhor que a das próximas décadas.


É preciso ressaltar e ressaltar. A ditadura militar fez um tremendo mal a este país. A partir da Constituição de 1988, avançamos na universalização do ensino, mas regredimos, deveras, na abrangência de nosso currículo e/por conseguinte na qualidade da educação. Desse momento adiante, nossos gestores passaram a ver a área como gasto e despesa. Teria sido diferente no passado? De todo modo, é evidente que o neoliberalismo transformou a educação em mercadoria. Os sistemas de ensino, como Objetivo, Anglo, Etapa, que têm sua didática direcionada à sua única finalidade, a aprovação no vestibular, comprovam isso. 

Os governos subsequentes foram pouco eficazes no necessário, como todos atestam, desenvolvimento da educação, sobretudo a educação básica. Os mais efetivos foram os governos do PT, que criaram programas para facilitar o acesso às universidades privadas, como foi anunciado nas últimas campanhas presidenciais. Entretanto, pouco produziram para a transformação do absurdo e excludente sistema de vestibular das universidades públicas. É justo assertar: os institutos (muitos com cursos de ensino médio e técnico) e universidades federais se multiplicaram, e o acesso a quem nunca teve acesso, foi facilitado pelos variados programas de cotas, embora as estatísticas não sejam tão esplendorosas como mostram as campanhas políticas. No entanto, as medidas efetivas do governo do PT para garantir a melhoria da qualidade da escola pública e básica tenham sido escassas e falhas. Houve aumento do repasse, dinheiro mesmo, para as escolas. É verdade. Houve a garantia das disciplinas de filosofia e sociologia, importante conquista, mas longe de ser suficiente para modificar o decadente sistema de ensino. A “lei do piso”, que visava restituir algo da dignidade do docente, entrou em vigor, mas sem vigor. Uma lei federal descumprida por dezenas de estados não pode ser considerada como uma melhoria efetiva. Além do que as propostas de valorização salarial dos docentes apresentaram resultados pífios.

Assim, o professor segue desprestigiado socialmente, é desrespeitado por alunos, pais, colegas, e todos acima hierarquicamente, tido como o coitado que escolheu a profissão por falta de oportunidades mais rentáveis, ou ainda como o principal culpado pelo acentuado declínio do ensino. É o que dizem por aí, o senso comum, ou os especialistas de revistas chulas, como a Veja, Época, Istoé. Culpabiliza-se o indivíduo e não o sistema. Isso é parte do ideário conservador, ou como preferirem, liberal, neoliberal, capitalista, reacionário, tradicional, a escolher. Com a morte do pensamento, semelhanças transformam-se em igualdade. 

Claro. Não podemos nos iludir. A diversidade no currículo não é garantia de qualidade no ensino. É custoso, no entanto, acreditar que o acesso ao saber é oferecido ou não pelo Estado, sem a consulta e/ou aprovação da população, a principal interessada. O diálogo sobre a educação segue de um modismo a outro, repleto de sensos comuns e sem nenhuma profundidade, a não ser, isoladamentee, nas reflexões de acadêmicos, muitas vezes  mal-interpretados ideologicamente. Pensar requer esforço. Assim, seguimos contemplando transformações lentas e ineficazes, que revelam um imenso vazio de nossos intelectos.  Consequência da debilidade educacional brasileira?

Em tempos de surdez, muitos ainda não conseguiram entender que a defesa da educação não é só mais um episódio da contemporânea, irracional e artificial guerra ideológica travada nos campos de batalha, sobretudo os virtuais. É claro e evidente: educação, cultura e conhecimento são fundamentais para a vida.

Pensemos, ao invés de resmungar.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Veja

Veja

Segunda-feira, aula de filosofia. Repentinamente, após a exposição dos princípios da democracia, emerge uma acalorada discussão sobre a atual conjuntura política brasileira. Discursos efusivos, pontos de vista contrários, argumentos de todas as espécies brotam de cérebros e bocas ávidos por participação. O colóquio está instaurado e o professor, ao centro, apenas rege a discussão, não participando efetivamente. Até que um desavisado e ousado aluno provoca o mestre. - Professor, o que o senhor acha da Revista Veja? Todo mundo fala mal dela, mas eu acho ela boa, sempre me atualizo e me informo por ela.
Sem vergonha, recato ou alarde, o loquaz docente replica, para a admiração e deleite dos presentes:
- Mesmo que todo o papel higiênico do mundo tivesse acabado, eu me recusaria a utilizar a revista Veja pra limpar a minha bunda. Tenho respeito pelo meu cu.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Tic-tac

Tic-tac

Tic-tac. Mal nasceu o dia, Fulano já estava de pé, se aprontando. Deixava a roupa separada na véspera parar ganhar tempo de sono. Minutos preciosos dentro do mundo onírico, a única fantasia de sua vida. Além disso, tinha o corpo: quando dormia menos de seis horas sentia um cansaço sobrenatural em sua jornada. Por isso calculava seu tempo, tinha um cérebro matemático que, infelizmente, já não funcionava com tanta precisão. O relógio de pulso era companhia indispensável para controlar suas pequenas ações diárias. Cinco minutos para as necessidades fisiológicas. Sete minutos para o banho, incluindo o barbear-se. Três minutos para vestir-se. Dezoito minutos para preparar o café e comer. Três minutos para cuidar de seu gato. Tic-tac.

Sabia que não podia contar com imprevistos. O elevador, por exemplo, podia demorar de zero a sessenta segundos para chegar. A caminhada até o ponto de ônibus levava dois minutos. Já o ônibus passava num intervalo de tempo que geralmente estava compreendido entre às 6:20 e 6:24. O percurso até a escola era de vinte e cinco minutos, geralmente. Fulano é formado em Física. Leciona, no período da manhã, para turmas de Ensino Médio em uma escola da zona central de São Paulo. À tarde, atravessa a cidade para chegar a uma outra escola, agora de Ensino Fundamental, onde dá aula de Ciências. Seus cálculos o colocavam no seu destino com uma breve folga. Geralmente dez minutos era a sua margem de segurança. Odiava se atrasar. 

Esse tempo extra lhe permitia fazer de modo relaxado os pequenos rituais pré-trabalho: lavar as mãos, sujas por compartilhar o transporte público com outras centenas de pessoas, vestir seu avental, organizar seus diários de classe, selecionar os gizes e caminhar até à sala. Tic-tac. Às 7:00 estava de pé, frente à porta. Com freqüência chegava um ou dois minutos antes do horário. Nunca se atrasava. Apagava a lousa, posicionava o giz, esperava os alunos sentar. Nessa hora faziam pouco barulho. Todos tinham sono. Fazia a chamada e então começava a falar. Já não tinha a mesma paixão de quando começara, há quinze anos. Sua vitalidade enfraquecia com o passar do tempo. 

Logicamente, o tempo da aula era todo calculado. Cinco minutos para a chamada e organização da sala, trinta minutos para explicar a matéria, o restante, para as dúvidas. Eventualmente, e mesmo que acreditasse ser Cronos, ou seu filho legítimo, faltava-lhe tempo para cumprir estas etapas. Não entendia como e matutava: “para onde foi esse tempo, que eu não percebi passar? Ando muito distraído, o que pode ser? Já não controlo mais meu tempo?”, questões que o perturbavam, mas não o suficiente para desviá-lo de seu foco, as aulas. Considerava-se um professor exemplar, muito comprometido.

Repetia o mesmo ritual mais cinco vezes no período da manhã. Mas nem sempre os alunos eram silenciosos. Quase nunca, na verdade. Almoçava na escola. Era uma comida ruim, sem sal, mas isso também não importava muito. O importante era o tempo que ganhava com a tarefa, pois a comida já estava pronta, era só por no prato e devorar. A fome, após seis aulas, era imensa, comia com pressa e então descansava por dez minutos. Escovava os dentes e seguia para o ponto de ônibus. No percurso, corrigia trabalhos e provas Tempo precioso. 

Tic-tac. À tarde, ficava extenuado. Lidar com seres humanos na puberdade não é tarefa das mais fáceis. Utilizava também o tempo do intervalo do período da tarde, vinte minutos, para as tarefas de correção e freqüentes burocracias. Fulano pouco falava com seus colegas de trabalho, era tímido, e ao mesmo tempo, prepotente, considerava-os, em sua maioria, completos idiotas. Saía da escola às 18:50. Viajava de ônibus de volta para casa. Geralmente de pé, amassado por outros passageiros, e sofrendo a cada freada brusca do motorista.

Morava só. Tinha 40 anos. Teve um companheiro certa vez. Moraram juntos três anos. Não funcionou. Cada um tinha um ritmo, um tempo diferente. Fulano, apesar de todo o amor que sentia por Sicrano, acabou achando melhor se separar. Sofria muito. Agora, pouco pensava em Sicrano. Aliás, evitava os sentimentos. Era como máquina.

Certo é que sua experiência vinha lhe possibilitando uma diminuição no tempo gasto com o trabalho. Já não planejava mais aulas. Depois de quinze anos lecionando a mesma matéria, dominava todos os conteúdos, que pareciam fluir naturalmente de sua boca. Suas provas eram basicamente as mesmas, sempre. Alterava apenas os valores dos enunciados. Fazia tudo calculado. Não podia perder tempo. Tic-tac.

Em casa, após o longo dia de trabalho, Fulano descansava na frente da TV. Agora, o tempo já não lhe importava. Aliás, utilizava essas horas sobressalentes para recuperar-se dos gritos, dos desmandos, das respostas atravessadas, da algazarra vivida ao longo do dia. “A cada ano, as salas estão mais lotadas e os alunos piores. Será que conseguirei me aposentar com saúde?”, pensava. 

Recolhia os cacos do seu ser, tentava restabelecer alguma ordem e ter uma pequena sensação de paz através da TV. Assistia muito a programas de perguntas e respostas, quizzes de conhecimentos gerais. Assistia-os até em outras línguas, em canais estrangeiros, se necessário. Era muito bom nisso. Às vezes assistia a filmes policiais, com roteiros complexos, com deduções e investigações nebulosas. Eram seus preferidos.

Tinha poucos amigos. Tinha pouco dinheiro. Seu salário proporcionava-lhe uma vida medíocre. Mas Fulano não reclamava, não fazia planos para o futuro. Vivia o presente, o eterno presente, repetidamente, como um relógio.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O ex-

O ex-


Atuou três anos como professor. Entrou esperançoso, saiu perplexo. O caos, o desarranjo, o estado putrefato da escola fizeram-no tomar uma dura decisão: “que se fodam esses alunos, vou arrumar outro emprego!”. E se foi. Três anos depois, os gritos daquelas crianças rejeitadas, dos colegas professores, da diretora-perua, da inspetora-carcereira, seguem ecoando em sua mente vazia. E ele, com muito esforço, repete o mantra que criou: “Que se foda, que se foda!” 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Café-com-professores

Café-com-professores *


- Nossa Fernanda, que lindo!! Onde você comprou?
- Ah, eu não agüento mais aquela bicha do 1ºC. Hoje eu falei pra ele: “Sabe do que você precisa? De uma rola bem grande pra virar homem!”
- Esse sindicato é um bosta! É só politicagem. Não querem saber da gente...
- Comprei no shopping. E vocês não acreditam quem eu vi ontem naquele shopping novo que inaugurou, o Thiago Lacerda!
- Quem quer café?
- Ah, eu não vejo a hora de acabar meu estágio probatório! Depois disso não vou mais engolir sapo!
- Não acredito que você disse isso pra um aluno!!
- Ah, eu agarrava ele, hehe..
- Ah, vocês viram a roupa da Jennifer da 8ª A? Deve ser DASPU. Perguntei pra ela se não tinha vergonha de sair de casa vestida desse jeito.
- Falei! Ah, que moleque folgado! Queria ficar dançando funk no meio da minha aula. Toda semana é a mesma coisa, não agüento mais! Como ele é vulgar! Não consigo dar aula desse jeito. Acho que exagerei, mas chega uma hora que não dá mais pra segurar.
- Quem quer café?
- O que tem de lanche hoje? Sobrou pra mim? Ah, tinha que ser o Jacques! Ele come todo o lanche, não deixa nada pra mim! Jacques, você me paga viu!
- Que nem eu! Eu não tô nem aí pra essa diretora! Tudo que ela fala eu faço ao contrário.
- É... O problema é que se a gente não apoiar o sindicato estamos perdidos, ninguém mais vai brigar pela gente.
- Alguém mais quer café?
- Não fui eu! Eu não como presunto!
- Ah, nem me fale! E eu queria tanto ir embora hoje! Não agüento mais dar aula praquela 8ª B. Ainda bem que o ano está acabando!
- Ah, fala baixo, ela vem vindo!
- Professores, desculpe interromper o café de vocês mas tenho uma coisa muito séria para falar! O aluno Marcelo do 1ºC veio junto com a Débora, a monitora da classe, fazer uma reclamação muito grave. Disseram que hoje, durante a aula, uma professora o ofendeu utilizando linguagem chula e grosseira, coisas tão horríveis que eu não vou repetir aqui. Eu já tive uma conversa com a professora e quero dizer para vocês: pelo amor de Deus! Nunca digam palavrões para os alunos, nunca xinguem os alunos. Por mais filhos da puta que eles sejam, controlem-se!
- O café está acabando.
- Todos nós aqui somos professores. Temos que dar o exemplo, temos que manter a compostura, ou então nos igualamos a eles e perdemos a razão. Peço que quando algo acontecer, quando eles te tirarem do sério, se acalmem. Se estiverem muito nervosos, chamem a inspetora, deixem a sala, tomem uma água, relaxem. Se for o caso, nem precisam voltar pra sala de aula. Mas o mais importante: não xinguem, não digam palavrões para os alunos! Por favor! Isso pode custar um processo administrativo para vocês professores e para a escola, podemos até perder nossos empregos.
- É, eu acho que você está correta D. Marli.
- Eu nunca xinguei os meus alunos.
- Bom, este era o recado que eu queria dar. Podem voltar ao café.
- Gente, mais alguém vai querer café? Está acabando? Posso pegar tudo?
- Vi um receita ontem na Ana Maria deliciosa. Panettone trufado.
- Então, como eu estava falando, vi o Thiago Lacerda no shopping. Ahh..  Que homem! Meu deus! Tava com uma loira aguada, deve ser a mulher dele.
- Ah, o viadinho foi falar pra diretora! Tá ferrado, agora sim que eu repito ele de ano!
TRRRRRRRRRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMMMMMMMMMMM
- E você viu a nova do Serra? Quer que os professores façam prova pra ganhar aumento! Muito filho da puta, né?
- Nossa, panettone trufado, você anotou a receita, depois me passa?
- Esse ano não acaba! Quero ir pra São Sebastião passar o natal com o meu pai. Adoro praia.
- Jacques, da próxima vez você deixa um lanche pra mim.
- Gente, o sinal já bateu, vamos descer?
-   Ele está na nova minissérie, né? Adoro ele.
-   Ixi, o café acabou.
-   E o desgraçado quer ser presidente. Alguém podia dar um tiro nele!
-   E vocês viram aquela Stephanie do 3ºB? Está com ataque histérico hoje, não pára de gritar! Ô menina insuportável. Ainda bem que o ano está acabando.



* Conto escrito há alguns anos. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Atacar!

Atacar!
Semanalmente o professor-filósofo, além da estafante carga-horária de aulas mal remuneradas, enfrenta uma temível reunião pedagógica chamada HTPC. A estranha sigla, que lhe fora apresentada anos atrás como  “Hora de Trabalho Perdido Coletivamente”, revela a intenção de uma boa alma do passado de fomentar o trabalho pedagógico coletivo. Entretanto, não é o que se passa na Escola Estadual General Costa e Silva, onde trabalha nosso herói.
Com bravura e um tanto de sono, enfrenta o temido HTPC. A saber: o sono provém da digestão iniciada há pouco, o que se impõe como o primeiro dos grandes desafios do professor neste início de tarde – vencê-lo. Lembremos que professores-filósofos detestam acordar cedo, e após seis longas aulas, em salas quentes e apertadas, apinhadas de adolescentes barulhentos, tudo o que o professor deseja é um sofá para recostar, e uma televisão para assistir um fútil programa futebolístico, a fim de esvaziar sua mente das vozes ecoantes dos alunos. O sono seria a sequência natural nessa série de eventos, uma deliciosa retomada dos sonhos noturnos, interrompidos pelo barulho estridente do despertador, horas antes. Entretanto, hoje não os tem, o sofá,  a TV, o sono, os sonhos. Cabe-lhe quarenta minutos para tapar o buraco do estômago, corroído pelo café do intervalo e retornar à escola, onde a reunião se inicia.        
Seus colegas professores marcham rumo à sala de reuniões como soldados marcham em direção ao campo de batalha. A sensação de dever paira no ar, a consciência do soldado numa guerra que não é a dele é evidente: "que diabos estou fazendo aqui???" Aos poucos, cada um se posiciona. A batalha tem início. É conduzida pelas hábeis mãos da coordenadora-pedagógica, uma jovem senhora, disposta e idealista, que angustiada, como os demais, busca respostas para a insolúvel questão: “o que fazer para melhorar o rendimento de nossos alunos?”
Os soldados não respondem imediatamente. A questão paira no ar como um míssil teleguiado que os atingirá a qualquer momento. Enquanto não os acerta, outras informações, os ditos “informes”, são dadas. É talvez a etapa mais enfadonha, e de maior agonia. Todos sabem que o míssil os espreita. Mas têm de ouvir aos comunicados chatíssimos da Diretoria de Ensino. O conteúdo: cursos de formação continuada docente, ou "atividades de perfumaria", como gosta de chamar o professor-filósofo, em que os professores são convocados a partilhar suas experiências mediados por algum especialista de plantão. Fala-se em vão, e todos têm a sensação oculta de que o fazem para matar o tempo. Enfim, matam-no. E embora seja assim, há professores que apreciam tais atividades, pois ao participar, são desobrigados a “dar aula”, o que de certa forma, quebra-lhes a massacrante rotina. Nosso bravo soldado prefere estar junto de seus alunos adolescentes. Com eles aprende mais, e quando não, diverte-se.
Enfim o míssil cai: o que o corpo docente pode fazer para melhorar o rendimento dos alunos? Impõe-se então a segunda grande missão do professor-filósofo: manter-se calado. Depois de tantos anos de escola pública desenvolveu um profundo ceticismo em relação a qualquer tentativa de diálogo. Sabe de cor a fala dos colegas, seus argumentos e refutações. E mesmo que seja novo nesta escola, lá leciona por pouco mais de um ano, a partir de uma indução empírica, concluiu há algumas semanas que todas as escolas se assemelham nesse quesito. Logo, não mais acredita na possibilidade de mudança. Não com essas ideias. Não com essa estrutura.
A irritação do professor-filósofo se dá pelas ideias pedagógicas, se é que podem ser assim chamadas, que são novamente retomadas. Estas, giram em torno de dois verbos, diagnosticados por Foucault há cerca de quarenta anos: vigiar e punir. De acordo com essas diretrizes, a função primordial da escola não é a de ensinar conteúdos, ou desenvolver habilidades discentes, mas sim a de introjetar nos indivíduos a lei. E como se faz isso? Através da reflexão, do amadurecimento, do gradativo crescimento individual, rumo à tão almejada autonomia? Não. A introjeção das leis é realizada pela repressão.
É a ideia “educacional” em voga no mundo ocidental no últimos 300 anos, segundo o referido filósofo. Obviamente, o mundo não é o mesmo, as estruturas, os poderes, e tampouco os sujeitos são os mesmos. Mas permanece a ideia de controle, que se aplica sobre os alunos, primeiramente sob a forma de um calhamaço de regras, ditas "disciplinares". Tudo é controlado: o tempo, pela obsessão com os horários de entrada e saída, das trocas de aula, do intervalo, da realização das atividades pedagógicas, etc...; o espaço, pela determinação de que tais indivíduos devem ser confinados em determinados lugares (salas de aulas, pátio, quadra de esportes, etc), em determinados períodos; os ânimos, pela imposição de determinadas posturas discentes, como o interesse, os bons modos, a vigília contínua, a postura (corpo ereto e prontificado) o não esquecimento do material didático-pedagógico, a disposição para a realização das atividades, o não envolvimento em brigas, etc...; as vestimentas, pela imposição do uso de uniformes, e proibição de certas peças, como bonés, lenços, óculos escuros, blusas de cores berrantes, etc...; além do controle da fome, das necessidades fisiológicas, etc, etc, etc. O que está por trás de tudo isso, segundo o Foucault, é o condicionamento destes indivíduos ao mercado de trabalho, ao capitalismo puro e selvagem, onde permanecerão por 30, 40, 50 anos.  A escola serve como amansadora das feras humanas, a adestradora dos espíritos revoltos, a instituição que preparará a todos para os insuportáveis e infindáveis anos de exploração (voluntária ou obrigatória?) que virão. Diagnóstico tenebroso.
Tendo disso consciência, o professor-filósofo se corrói internamente quando, semanalmente, depara-se com os relatos de seus colegas acerca da atual crise educacional brasileira. As explicações são as mais diversas, e vem em forma de descarrego catártico, com data, hora e local marcados. A maioria dos colegas professores (sim, felizmente, não são todos) purificam-se e eximem-se culpando a família, a progressão continuada, a tecnologia, as drogas, a mídia, a sociedade e a decadência dos valores tradicionais, enfim. Culpados não faltam para explicar o baixo rendimento discente. Mas louvam, e ai de quem ousar discordar!, a tão amada e adorada disciplina. Assim, as ordens da instituição escolar, personalizadas na figura da coordenadora-pedagógica, repetem infindavelmente um discurso disciplinante: temos que respeitar os horários, não podemos permitir que os alunos façam isso ou aquilo. Por fim, redefine-se a atuação do professor, ou ao menos, incumbe-lhe de mais uma função: a de uma espécie de fiscal, e, ou, por quê não, de carcereiro? Numa instituição disciplinar, todos são vigiados. Todos serão punidos. Inclusive os mantenedores da ordem.
Porém, ainda não chegamos na crise. Para muitos, e para o desespero do professor-filósofo, o disciplinamento é a solução. De fato, se houvessem funcionários em número suficiente, e dispostos a dar o sangue, a “vestir a camisa”, (entenda-se, bem remunerados e doutrinados), é possível que esta instituição disciplinar desse o resultado de décadas atrás. Mas e o saber, e o conhecimento? Alguém ousa discuti-lo? Não. A escola que tem como base tão somente a disciplina é como um esqueleto sem músculos, não se sustenta. Todos esquivam-se do míssil do conhecimento. Na escola, lendariamente o lugar do saber, pouco se fala de pedagogia, métodos de ensino, didática, estratégias de aula, modos de avaliação, e o mais importante, os princípios que fundamentariam estas práticas. Com isto, os alunos tornam-se números. O que importa é seu rendimento numérico, os famosos índices, que florescem pífios, por esses, e tantos outros motivos. Aí está de fato a crise: todos concordam que é preciso melhorar a educação, mas não se consegue propor nada que difira de práticas disciplinares. Ó disciplina, deusa redentora! 
Após sobreviver a mais essa batalha campal, a mais esse bombardeamento disciplinar semanal, nosso herói deixa a escola e segue caminhando para sua morada. Pondera sobre a necessidade da disciplina. “Claro, a disciplina por si só não é ruim. Mas ela não pode ser a única função da escola. Ensinar ao aluno como ele deve ser é muito fácil. Controlá-lo também, impor limites. Mas isso basta? Gostaria de ver essa molecada entendendo de fato o sentido das leis, porque elas existem e porque são necessárias. Isto é autonomia.”
Continua sua caminhada, sendo tomado por sentimentos amorfos e contraditórios. Distingue um, o sentimento de tristeza pelos seus colegas professores. Não pelo fato deles legitimarem uma prática inútil e ao mesmo tempo nociva aos alunos, mas principalmente por eles, professores também, não notarem que suas ações têm sido tão improfícuas e vazias, e que juntos, falando a mesma língua, poderiam fazer mais. Reavalia. Parece haver algo maior que ultrapassa a todos. Não tem certeza do que ainda. Não guarda rancor da coordenadora-pedagógica, pois compreende que seu autoritarismo é o único recurso que tem. Acredita que no fundo suas intenções são boas, embora ineficazes, e que tem feito o melhor que pode.
 Mas o pensamento que realmente lhe pega, que lhe aflige, é o do sentido da profissão, diante de previsões futuras nada animadoras. “O que fazer? Escrever livros não muda as coisas. Reações violentas ou suspensão do juízo? Quero contribuir, de alguma forma, mas como? Eureca! Construir mísseis!”


quarta-feira, 29 de maio de 2013

Fezes pedagógicas

Fezes pedagógicas


Vocês já perceberam que esta escola é uma merda? Já? E já perceberam que todas as outras escolas, particulares ou públicas também são uma merda? Por que será?
Vocês já se perguntaram que merda vocês estão fazendo aqui, porque vocês têm que fazer esse monte de merda chata, coisas que nunca fariam por vontade própria? E essas merdas de regras idiotas, tipo, “não pode chegar atrasado”, “não pode falar ´merda` na sala”, “não pode mandar a professora ir à merda”, vocês já pensaram por que temos que obedecer essa merda toda?
Quem nunca se sentiu infeliz com a merda da escola que levante a mão! Quem nunca quis mandar a professora de história ir à merda, quem nunca quis enforcar aquela merda de diretora?
E quem nunca ficou puto com aquela velha história de merda “se você não estudar, você nunca será nada na vida!”? Que papo de merda. “Os Ronaldinhos”, mal sabem escrever e hoje estão lá na merda da Europa, morando em castelos, andando de Ferrari, comendo umas minas gostosas (às vezes até uns travecos feios de merda), ganhando milhões de dólares com seu emprego super-divertido “jogador de futebol”. Que merda!  Não precisa estudar pra ser jogador de futebol. Pra que estudar?
E quem nunca ficou puto em ter de acordar cedo pra vir à escola fazer uma merda de prova que só serve pra você tirar uma merda de nota? Daí no final do ano você é promovido e no ano que vem tem de fazer de novo tudo a mesma merda? Não é assim?
E quem nunca teve vontade de cabular, e quem nunca cabulou? Quem não prefere Educação Física àquela merda de aula de Matemática? Quem não odeia aquela merda de aula de química, com aquele monte de elemento que no fundo são tudo um monte de merda mesmo. É, merda! Merda é feita de átomos, né? A professora de química deveria explicar essa merda pra gente.
Porra, e lembra nas primeiras séries, quando tínhamos de fazer fila, rezar o Pai Nosso, cantar o Hino, fazer desenho do dia do índio, fazer sabonete no dia das mães? Quem não odiava aquela merda?!?!
E quem não odeia a hora da chamada? Aquele barulho dos infernos, e aquela besta do professor de inglês gritando nossos números!! Ah, que merda, eu sacaneio ele sempre. Nunca respondo na hora certa, só pra ele ficar puto! É muito chato essa merda toda. E quem não tem vontade de mandar aquela inspetora de merda pro inferno, só vive atazanando.
E quem nunca teve vontade de pular o portão da escola, e quem nunca pulou? Eu pulei. Pulo o portão porque a escola é uma merda, cheia de professores merda, de funcionários merda, de alunos mais merda ainda!
E a merda da minha família não entende por que eu vou mal na escola, “vou mal porque a escola é uma merda” eu digo pra minha mãe. E ela diz: “merda por que, filhinho?” Bem, a escola é quase como um presídio. Você não tem liberdade de nada, só pode obedecer. Não pode ouvir mp3, falar no celular, mandar vídeos de gatinhas peladas, etc, dar porrada nos moleques retardados, pôr bomba no banheiro, xingar aquelas putinhas, não tem bicicletário, não pode andar de skate, tem que fazer umas merdas de desenho praquela bicha do prof. de educação artística, ler aqueles textos idiotas de filosofia, não pode fumar, não pode cabular, ir ao banheiro, sair mais cedo, porra, não fode, que merda!
Ah, e a merda daquela “tiazinha” da secretaria, que praga dos infernos: recebe dinheiro pra fazer um serviço boçal, que até quem nunca foi na escola consegue fazer, e ainda trata mal as pessoas e faz tudo de má vontade, e no final, faz errado! Ahh, que merda!
Sem falar na comida da escola! Ave..... Quase vomito quando como aquela merda de polenta mal-feita, aquele arroz-jesus-me-chama, aquele bife-de-gato-mal-passado! É tudo uma merda, os Paulos Malufs da vida desviam dinheiro e a gente tem que comer merda. Alguém me salve!
A escola é um lugar de merda, não é? Bem, mas pelo menos tem umas gatinhas pra gente xavecar. Pelo menos tem a professora de biologia, que é uma delícia, apesar de chata. Tão novinha, peladinha deve ser linda... por que será que é tão chata? Deve ter um namorado de merda... Deve ser professor também o desgraçado.
Ah, pelo menos ainda nos sobrou a quadra de futebol, que mesmo toda fudida, dá pra gente disputar uns campeonatos. É divertido. Mas é pouco se você pensar direito: passamos boa parte de nossa infância e adolescência num lugar de merda desses... É triste na verdade.
Às vezes fico pensando, será que só as escolas brasileiras é que são uma merda? Acho que não. Nos States, primeiro mundo, a molecada fica tão de saco cheio da merda da escola que de vez em quando leva umas metralhadoras bem fudidonas e sai matando todo mundo. Gente doida, país de merda, não? Aqui no Brasil, que é mais de merda ainda, é diferente, a gente prefere pixar as paredes, quebrar as carteiras, os vidros, xingar as professoras, dar porrada nelas de vez em quando, mas a gente não mata ninguém com metralhadora, né? Isto é tarefa da polícia, não é verdade? Dessa polícia de merda....
E esses polícias de merda estudaram nas mesmas escolas de merda que a gente estuda. Será que tem a ver? E os outros bandidos também estudaram em escolas de merda. Tem a ver? Talvez, tudo tenha a ver, talvez nada. O que eu tenho certeza é de que esta escola é uma merda. Por quê? Porque eu não aprendo nada...  Eu só copio.