quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Involução

Involução

Hoje, meio que ao acaso, e sem saber onde me enfiava, acabei entrando no arquivo-morto da escola que leciono. Meus alunos ensaiavam no teatro a peça que apresentarão para a minha disciplina, no final do bimestre. Ouvi vozes que vinham do corredor. Vi uma porta entreaberta adiante, resolvi verificar. Professores têm que estar sempre em estado de alerta. Adolescentes costumam fazer merda.

De fato, dois alunos vasculhavam prontuários de antigos estudantes. Ao invés de repreendê-los, passei a fazer o mesmo. Curiosidade por coisas antigas é muito salutar, e a minha já havia atingido níveis estratosféricos.

Não conheço a história da Escola Fernão Dias Paes. Pelo pouco que sei, ela foi inaugurada em 1947 e teve professores famosos, como o ex-presidente Fernando Henrique e sua falecida esposa, Ruth Cardoso. Nas três primeiras décadas, era uma escola da elite. A sala, grande, lúgubre, empoeirada, me proporcionou uma breve crise de rinite, provavelmente por conta dos bilhões e zilhões de ácaros adentrando as minhas sensíveis narinas. Dei de ombros. Estava absorto pela viagem psíquico-temporal que aqueles arquivos me proporcionavam. Conheci pessoas, algumas provavelmente falecidas, contemplei suas fotos, que traziam penteados e aparência datada, e me pus a imaginar: estudantes, docentes, o prédio da escola, a Avenida Pedroso de Morais, o bairro de Pinheiros, a cidade de São Paulo, o Brasil, a vida. Como as coisas haviam mudado!



Os papeis embolorados e as fotografias em preto e branco me trouxeram uma nostalgia de algo que não vivi. Ok, nada de anormal. Fato é que ter uma consciência nos permite transitar por sensações, imagens e percepções que se ligam aos afetos, invariavelmente.  E em segundos, vamos da nostalgia ao ódio, da saudade do não vivido à angústia da imanência. Eu explico. Nos anos 60, a escola se chamava Instituto Fernão Dias Paes, e oferecia, além do "ginasial" e "colegial", cursos profissionalizantes, como magistério e administração. A estupefação se deveu à grade curricular. Nos cursos secundários, eram ministradas aulas de grego, latim, francês, espanhol, filosofia, sociologia, psicologia, desenho, canto, além das disciplinas tradicionais (português, matemática etc) distribuídas nos programas dos cursos variados.



Ao comparar com um prontuário de um aluno de 1991, a raiva se transmutou em desencanto. Em menos de 30 anos, restaram à grade apenas as disciplinas hoje consagradas. Sim, nos anos 60, quem podia frequentar a escola tinha, pelos menos em termos curriculares, uma formação melhor que a de 1985 em diante, e ao que indicam as ações do nefasto Temer, melhor que a das próximas décadas.


É preciso ressaltar e ressaltar. A ditadura militar fez um tremendo mal a este país. A partir da Constituição de 1988, avançamos na universalização do ensino, mas regredimos, deveras, na abrangência de nosso currículo e/por conseguinte na qualidade da educação. Desse momento adiante, nossos gestores passaram a ver a área como gasto e despesa. Teria sido diferente no passado? De todo modo, é evidente que o neoliberalismo transformou a educação em mercadoria. Os sistemas de ensino, como Objetivo, Anglo, Etapa, que têm sua didática direcionada à sua única finalidade, a aprovação no vestibular, comprovam isso. 

Os governos subsequentes foram pouco eficazes no necessário, como todos atestam, desenvolvimento da educação, sobretudo a educação básica. Os mais efetivos foram os governos do PT, que criaram programas para facilitar o acesso às universidades privadas, como foi anunciado nas últimas campanhas presidenciais. Entretanto, pouco produziram para a transformação do absurdo e excludente sistema de vestibular das universidades públicas. É justo assertar: os institutos (muitos com cursos de ensino médio e técnico) e universidades federais se multiplicaram, e o acesso a quem nunca teve acesso, foi facilitado pelos variados programas de cotas, embora as estatísticas não sejam tão esplendorosas como mostram as campanhas políticas. No entanto, as medidas efetivas do governo do PT para garantir a melhoria da qualidade da escola pública e básica tenham sido escassas e falhas. Houve aumento do repasse, dinheiro mesmo, para as escolas. É verdade. Houve a garantia das disciplinas de filosofia e sociologia, importante conquista, mas longe de ser suficiente para modificar o decadente sistema de ensino. A “lei do piso”, que visava restituir algo da dignidade do docente, entrou em vigor, mas sem vigor. Uma lei federal descumprida por dezenas de estados não pode ser considerada como uma melhoria efetiva. Além do que as propostas de valorização salarial dos docentes apresentaram resultados pífios.

Assim, o professor segue desprestigiado socialmente, é desrespeitado por alunos, pais, colegas, e todos acima hierarquicamente, tido como o coitado que escolheu a profissão por falta de oportunidades mais rentáveis, ou ainda como o principal culpado pelo acentuado declínio do ensino. É o que dizem por aí, o senso comum, ou os especialistas de revistas chulas, como a Veja, Época, Istoé. Culpabiliza-se o indivíduo e não o sistema. Isso é parte do ideário conservador, ou como preferirem, liberal, neoliberal, capitalista, reacionário, tradicional, a escolher. Com a morte do pensamento, semelhanças transformam-se em igualdade. 

Claro. Não podemos nos iludir. A diversidade no currículo não é garantia de qualidade no ensino. É custoso, no entanto, acreditar que o acesso ao saber é oferecido ou não pelo Estado, sem a consulta e/ou aprovação da população, a principal interessada. O diálogo sobre a educação segue de um modismo a outro, repleto de sensos comuns e sem nenhuma profundidade, a não ser, isoladamentee, nas reflexões de acadêmicos, muitas vezes  mal-interpretados ideologicamente. Pensar requer esforço. Assim, seguimos contemplando transformações lentas e ineficazes, que revelam um imenso vazio de nossos intelectos.  Consequência da debilidade educacional brasileira?

Em tempos de surdez, muitos ainda não conseguiram entender que a defesa da educação não é só mais um episódio da contemporânea, irracional e artificial guerra ideológica travada nos campos de batalha, sobretudo os virtuais. É claro e evidente: educação, cultura e conhecimento são fundamentais para a vida.

Pensemos, ao invés de resmungar.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Veja

Veja

Segunda-feira, aula de filosofia. Repentinamente, após a exposição dos princípios da democracia, emerge uma acalorada discussão sobre a atual conjuntura política brasileira. Discursos efusivos, pontos de vista contrários, argumentos de todas as espécies brotam de cérebros e bocas ávidos por participação. O colóquio está instaurado e o professor, ao centro, apenas rege a discussão, não participando efetivamente. Até que um desavisado e ousado aluno provoca o mestre. - Professor, o que o senhor acha da Revista Veja? Todo mundo fala mal dela, mas eu acho ela boa, sempre me atualizo e me informo por ela.
Sem vergonha, recato ou alarde, o loquaz docente replica, para a admiração e deleite dos presentes:
- Mesmo que todo o papel higiênico do mundo tivesse acabado, eu me recusaria a utilizar a revista Veja pra limpar a minha bunda. Tenho respeito pelo meu cu.