terça-feira, 24 de setembro de 2013

O ex-

O ex-


Atuou três anos como professor. Entrou esperançoso, saiu perplexo. O caos, o desarranjo, o estado putrefato da escola fizeram-no tomar uma dura decisão: “que se fodam esses alunos, vou arrumar outro emprego!”. E se foi. Três anos depois, os gritos daquelas crianças rejeitadas, dos colegas professores, da diretora-perua, da inspetora-carcereira, seguem ecoando em sua mente vazia. E ele, com muito esforço, repete o mantra que criou: “Que se foda, que se foda!” 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Café-com-professores

Café-com-professores *


- Nossa Fernanda, que lindo!! Onde você comprou?
- Ah, eu não agüento mais aquela bicha do 1ºC. Hoje eu falei pra ele: “Sabe do que você precisa? De uma rola bem grande pra virar homem!”
- Esse sindicato é um bosta! É só politicagem. Não querem saber da gente...
- Comprei no shopping. E vocês não acreditam quem eu vi ontem naquele shopping novo que inaugurou, o Thiago Lacerda!
- Quem quer café?
- Ah, eu não vejo a hora de acabar meu estágio probatório! Depois disso não vou mais engolir sapo!
- Não acredito que você disse isso pra um aluno!!
- Ah, eu agarrava ele, hehe..
- Ah, vocês viram a roupa da Jennifer da 8ª A? Deve ser DASPU. Perguntei pra ela se não tinha vergonha de sair de casa vestida desse jeito.
- Falei! Ah, que moleque folgado! Queria ficar dançando funk no meio da minha aula. Toda semana é a mesma coisa, não agüento mais! Como ele é vulgar! Não consigo dar aula desse jeito. Acho que exagerei, mas chega uma hora que não dá mais pra segurar.
- Quem quer café?
- O que tem de lanche hoje? Sobrou pra mim? Ah, tinha que ser o Jacques! Ele come todo o lanche, não deixa nada pra mim! Jacques, você me paga viu!
- Que nem eu! Eu não tô nem aí pra essa diretora! Tudo que ela fala eu faço ao contrário.
- É... O problema é que se a gente não apoiar o sindicato estamos perdidos, ninguém mais vai brigar pela gente.
- Alguém mais quer café?
- Não fui eu! Eu não como presunto!
- Ah, nem me fale! E eu queria tanto ir embora hoje! Não agüento mais dar aula praquela 8ª B. Ainda bem que o ano está acabando!
- Ah, fala baixo, ela vem vindo!
- Professores, desculpe interromper o café de vocês mas tenho uma coisa muito séria para falar! O aluno Marcelo do 1ºC veio junto com a Débora, a monitora da classe, fazer uma reclamação muito grave. Disseram que hoje, durante a aula, uma professora o ofendeu utilizando linguagem chula e grosseira, coisas tão horríveis que eu não vou repetir aqui. Eu já tive uma conversa com a professora e quero dizer para vocês: pelo amor de Deus! Nunca digam palavrões para os alunos, nunca xinguem os alunos. Por mais filhos da puta que eles sejam, controlem-se!
- O café está acabando.
- Todos nós aqui somos professores. Temos que dar o exemplo, temos que manter a compostura, ou então nos igualamos a eles e perdemos a razão. Peço que quando algo acontecer, quando eles te tirarem do sério, se acalmem. Se estiverem muito nervosos, chamem a inspetora, deixem a sala, tomem uma água, relaxem. Se for o caso, nem precisam voltar pra sala de aula. Mas o mais importante: não xinguem, não digam palavrões para os alunos! Por favor! Isso pode custar um processo administrativo para vocês professores e para a escola, podemos até perder nossos empregos.
- É, eu acho que você está correta D. Marli.
- Eu nunca xinguei os meus alunos.
- Bom, este era o recado que eu queria dar. Podem voltar ao café.
- Gente, mais alguém vai querer café? Está acabando? Posso pegar tudo?
- Vi um receita ontem na Ana Maria deliciosa. Panettone trufado.
- Então, como eu estava falando, vi o Thiago Lacerda no shopping. Ahh..  Que homem! Meu deus! Tava com uma loira aguada, deve ser a mulher dele.
- Ah, o viadinho foi falar pra diretora! Tá ferrado, agora sim que eu repito ele de ano!
TRRRRRRRRRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMMMMMMMMMMM
- E você viu a nova do Serra? Quer que os professores façam prova pra ganhar aumento! Muito filho da puta, né?
- Nossa, panettone trufado, você anotou a receita, depois me passa?
- Esse ano não acaba! Quero ir pra São Sebastião passar o natal com o meu pai. Adoro praia.
- Jacques, da próxima vez você deixa um lanche pra mim.
- Gente, o sinal já bateu, vamos descer?
-   Ele está na nova minissérie, né? Adoro ele.
-   Ixi, o café acabou.
-   E o desgraçado quer ser presidente. Alguém podia dar um tiro nele!
-   E vocês viram aquela Stephanie do 3ºB? Está com ataque histérico hoje, não pára de gritar! Ô menina insuportável. Ainda bem que o ano está acabando.



* Conto escrito há alguns anos. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Atacar!

Atacar!
Semanalmente o professor-filósofo, além da estafante carga-horária de aulas mal remuneradas, enfrenta uma temível reunião pedagógica chamada HTPC. A estranha sigla, que lhe fora apresentada anos atrás como  “Hora de Trabalho Perdido Coletivamente”, revela a intenção de uma boa alma do passado de fomentar o trabalho pedagógico coletivo. Entretanto, não é o que se passa na Escola Estadual General Costa e Silva, onde trabalha nosso herói.
Com bravura e um tanto de sono, enfrenta o temido HTPC. A saber: o sono provém da digestão iniciada há pouco, o que se impõe como o primeiro dos grandes desafios do professor neste início de tarde – vencê-lo. Lembremos que professores-filósofos detestam acordar cedo, e após seis longas aulas, em salas quentes e apertadas, apinhadas de adolescentes barulhentos, tudo o que o professor deseja é um sofá para recostar, e uma televisão para assistir um fútil programa futebolístico, a fim de esvaziar sua mente das vozes ecoantes dos alunos. O sono seria a sequência natural nessa série de eventos, uma deliciosa retomada dos sonhos noturnos, interrompidos pelo barulho estridente do despertador, horas antes. Entretanto, hoje não os tem, o sofá,  a TV, o sono, os sonhos. Cabe-lhe quarenta minutos para tapar o buraco do estômago, corroído pelo café do intervalo e retornar à escola, onde a reunião se inicia.        
Seus colegas professores marcham rumo à sala de reuniões como soldados marcham em direção ao campo de batalha. A sensação de dever paira no ar, a consciência do soldado numa guerra que não é a dele é evidente: "que diabos estou fazendo aqui???" Aos poucos, cada um se posiciona. A batalha tem início. É conduzida pelas hábeis mãos da coordenadora-pedagógica, uma jovem senhora, disposta e idealista, que angustiada, como os demais, busca respostas para a insolúvel questão: “o que fazer para melhorar o rendimento de nossos alunos?”
Os soldados não respondem imediatamente. A questão paira no ar como um míssil teleguiado que os atingirá a qualquer momento. Enquanto não os acerta, outras informações, os ditos “informes”, são dadas. É talvez a etapa mais enfadonha, e de maior agonia. Todos sabem que o míssil os espreita. Mas têm de ouvir aos comunicados chatíssimos da Diretoria de Ensino. O conteúdo: cursos de formação continuada docente, ou "atividades de perfumaria", como gosta de chamar o professor-filósofo, em que os professores são convocados a partilhar suas experiências mediados por algum especialista de plantão. Fala-se em vão, e todos têm a sensação oculta de que o fazem para matar o tempo. Enfim, matam-no. E embora seja assim, há professores que apreciam tais atividades, pois ao participar, são desobrigados a “dar aula”, o que de certa forma, quebra-lhes a massacrante rotina. Nosso bravo soldado prefere estar junto de seus alunos adolescentes. Com eles aprende mais, e quando não, diverte-se.
Enfim o míssil cai: o que o corpo docente pode fazer para melhorar o rendimento dos alunos? Impõe-se então a segunda grande missão do professor-filósofo: manter-se calado. Depois de tantos anos de escola pública desenvolveu um profundo ceticismo em relação a qualquer tentativa de diálogo. Sabe de cor a fala dos colegas, seus argumentos e refutações. E mesmo que seja novo nesta escola, lá leciona por pouco mais de um ano, a partir de uma indução empírica, concluiu há algumas semanas que todas as escolas se assemelham nesse quesito. Logo, não mais acredita na possibilidade de mudança. Não com essas ideias. Não com essa estrutura.
A irritação do professor-filósofo se dá pelas ideias pedagógicas, se é que podem ser assim chamadas, que são novamente retomadas. Estas, giram em torno de dois verbos, diagnosticados por Foucault há cerca de quarenta anos: vigiar e punir. De acordo com essas diretrizes, a função primordial da escola não é a de ensinar conteúdos, ou desenvolver habilidades discentes, mas sim a de introjetar nos indivíduos a lei. E como se faz isso? Através da reflexão, do amadurecimento, do gradativo crescimento individual, rumo à tão almejada autonomia? Não. A introjeção das leis é realizada pela repressão.
É a ideia “educacional” em voga no mundo ocidental no últimos 300 anos, segundo o referido filósofo. Obviamente, o mundo não é o mesmo, as estruturas, os poderes, e tampouco os sujeitos são os mesmos. Mas permanece a ideia de controle, que se aplica sobre os alunos, primeiramente sob a forma de um calhamaço de regras, ditas "disciplinares". Tudo é controlado: o tempo, pela obsessão com os horários de entrada e saída, das trocas de aula, do intervalo, da realização das atividades pedagógicas, etc...; o espaço, pela determinação de que tais indivíduos devem ser confinados em determinados lugares (salas de aulas, pátio, quadra de esportes, etc), em determinados períodos; os ânimos, pela imposição de determinadas posturas discentes, como o interesse, os bons modos, a vigília contínua, a postura (corpo ereto e prontificado) o não esquecimento do material didático-pedagógico, a disposição para a realização das atividades, o não envolvimento em brigas, etc...; as vestimentas, pela imposição do uso de uniformes, e proibição de certas peças, como bonés, lenços, óculos escuros, blusas de cores berrantes, etc...; além do controle da fome, das necessidades fisiológicas, etc, etc, etc. O que está por trás de tudo isso, segundo o Foucault, é o condicionamento destes indivíduos ao mercado de trabalho, ao capitalismo puro e selvagem, onde permanecerão por 30, 40, 50 anos.  A escola serve como amansadora das feras humanas, a adestradora dos espíritos revoltos, a instituição que preparará a todos para os insuportáveis e infindáveis anos de exploração (voluntária ou obrigatória?) que virão. Diagnóstico tenebroso.
Tendo disso consciência, o professor-filósofo se corrói internamente quando, semanalmente, depara-se com os relatos de seus colegas acerca da atual crise educacional brasileira. As explicações são as mais diversas, e vem em forma de descarrego catártico, com data, hora e local marcados. A maioria dos colegas professores (sim, felizmente, não são todos) purificam-se e eximem-se culpando a família, a progressão continuada, a tecnologia, as drogas, a mídia, a sociedade e a decadência dos valores tradicionais, enfim. Culpados não faltam para explicar o baixo rendimento discente. Mas louvam, e ai de quem ousar discordar!, a tão amada e adorada disciplina. Assim, as ordens da instituição escolar, personalizadas na figura da coordenadora-pedagógica, repetem infindavelmente um discurso disciplinante: temos que respeitar os horários, não podemos permitir que os alunos façam isso ou aquilo. Por fim, redefine-se a atuação do professor, ou ao menos, incumbe-lhe de mais uma função: a de uma espécie de fiscal, e, ou, por quê não, de carcereiro? Numa instituição disciplinar, todos são vigiados. Todos serão punidos. Inclusive os mantenedores da ordem.
Porém, ainda não chegamos na crise. Para muitos, e para o desespero do professor-filósofo, o disciplinamento é a solução. De fato, se houvessem funcionários em número suficiente, e dispostos a dar o sangue, a “vestir a camisa”, (entenda-se, bem remunerados e doutrinados), é possível que esta instituição disciplinar desse o resultado de décadas atrás. Mas e o saber, e o conhecimento? Alguém ousa discuti-lo? Não. A escola que tem como base tão somente a disciplina é como um esqueleto sem músculos, não se sustenta. Todos esquivam-se do míssil do conhecimento. Na escola, lendariamente o lugar do saber, pouco se fala de pedagogia, métodos de ensino, didática, estratégias de aula, modos de avaliação, e o mais importante, os princípios que fundamentariam estas práticas. Com isto, os alunos tornam-se números. O que importa é seu rendimento numérico, os famosos índices, que florescem pífios, por esses, e tantos outros motivos. Aí está de fato a crise: todos concordam que é preciso melhorar a educação, mas não se consegue propor nada que difira de práticas disciplinares. Ó disciplina, deusa redentora! 
Após sobreviver a mais essa batalha campal, a mais esse bombardeamento disciplinar semanal, nosso herói deixa a escola e segue caminhando para sua morada. Pondera sobre a necessidade da disciplina. “Claro, a disciplina por si só não é ruim. Mas ela não pode ser a única função da escola. Ensinar ao aluno como ele deve ser é muito fácil. Controlá-lo também, impor limites. Mas isso basta? Gostaria de ver essa molecada entendendo de fato o sentido das leis, porque elas existem e porque são necessárias. Isto é autonomia.”
Continua sua caminhada, sendo tomado por sentimentos amorfos e contraditórios. Distingue um, o sentimento de tristeza pelos seus colegas professores. Não pelo fato deles legitimarem uma prática inútil e ao mesmo tempo nociva aos alunos, mas principalmente por eles, professores também, não notarem que suas ações têm sido tão improfícuas e vazias, e que juntos, falando a mesma língua, poderiam fazer mais. Reavalia. Parece haver algo maior que ultrapassa a todos. Não tem certeza do que ainda. Não guarda rancor da coordenadora-pedagógica, pois compreende que seu autoritarismo é o único recurso que tem. Acredita que no fundo suas intenções são boas, embora ineficazes, e que tem feito o melhor que pode.
 Mas o pensamento que realmente lhe pega, que lhe aflige, é o do sentido da profissão, diante de previsões futuras nada animadoras. “O que fazer? Escrever livros não muda as coisas. Reações violentas ou suspensão do juízo? Quero contribuir, de alguma forma, mas como? Eureca! Construir mísseis!”


quarta-feira, 29 de maio de 2013

Fezes pedagógicas

Fezes pedagógicas


Vocês já perceberam que esta escola é uma merda? Já? E já perceberam que todas as outras escolas, particulares ou públicas também são uma merda? Por que será?
Vocês já se perguntaram que merda vocês estão fazendo aqui, porque vocês têm que fazer esse monte de merda chata, coisas que nunca fariam por vontade própria? E essas merdas de regras idiotas, tipo, “não pode chegar atrasado”, “não pode falar ´merda` na sala”, “não pode mandar a professora ir à merda”, vocês já pensaram por que temos que obedecer essa merda toda?
Quem nunca se sentiu infeliz com a merda da escola que levante a mão! Quem nunca quis mandar a professora de história ir à merda, quem nunca quis enforcar aquela merda de diretora?
E quem nunca ficou puto com aquela velha história de merda “se você não estudar, você nunca será nada na vida!”? Que papo de merda. “Os Ronaldinhos”, mal sabem escrever e hoje estão lá na merda da Europa, morando em castelos, andando de Ferrari, comendo umas minas gostosas (às vezes até uns travecos feios de merda), ganhando milhões de dólares com seu emprego super-divertido “jogador de futebol”. Que merda!  Não precisa estudar pra ser jogador de futebol. Pra que estudar?
E quem nunca ficou puto em ter de acordar cedo pra vir à escola fazer uma merda de prova que só serve pra você tirar uma merda de nota? Daí no final do ano você é promovido e no ano que vem tem de fazer de novo tudo a mesma merda? Não é assim?
E quem nunca teve vontade de cabular, e quem nunca cabulou? Quem não prefere Educação Física àquela merda de aula de Matemática? Quem não odeia aquela merda de aula de química, com aquele monte de elemento que no fundo são tudo um monte de merda mesmo. É, merda! Merda é feita de átomos, né? A professora de química deveria explicar essa merda pra gente.
Porra, e lembra nas primeiras séries, quando tínhamos de fazer fila, rezar o Pai Nosso, cantar o Hino, fazer desenho do dia do índio, fazer sabonete no dia das mães? Quem não odiava aquela merda?!?!
E quem não odeia a hora da chamada? Aquele barulho dos infernos, e aquela besta do professor de inglês gritando nossos números!! Ah, que merda, eu sacaneio ele sempre. Nunca respondo na hora certa, só pra ele ficar puto! É muito chato essa merda toda. E quem não tem vontade de mandar aquela inspetora de merda pro inferno, só vive atazanando.
E quem nunca teve vontade de pular o portão da escola, e quem nunca pulou? Eu pulei. Pulo o portão porque a escola é uma merda, cheia de professores merda, de funcionários merda, de alunos mais merda ainda!
E a merda da minha família não entende por que eu vou mal na escola, “vou mal porque a escola é uma merda” eu digo pra minha mãe. E ela diz: “merda por que, filhinho?” Bem, a escola é quase como um presídio. Você não tem liberdade de nada, só pode obedecer. Não pode ouvir mp3, falar no celular, mandar vídeos de gatinhas peladas, etc, dar porrada nos moleques retardados, pôr bomba no banheiro, xingar aquelas putinhas, não tem bicicletário, não pode andar de skate, tem que fazer umas merdas de desenho praquela bicha do prof. de educação artística, ler aqueles textos idiotas de filosofia, não pode fumar, não pode cabular, ir ao banheiro, sair mais cedo, porra, não fode, que merda!
Ah, e a merda daquela “tiazinha” da secretaria, que praga dos infernos: recebe dinheiro pra fazer um serviço boçal, que até quem nunca foi na escola consegue fazer, e ainda trata mal as pessoas e faz tudo de má vontade, e no final, faz errado! Ahh, que merda!
Sem falar na comida da escola! Ave..... Quase vomito quando como aquela merda de polenta mal-feita, aquele arroz-jesus-me-chama, aquele bife-de-gato-mal-passado! É tudo uma merda, os Paulos Malufs da vida desviam dinheiro e a gente tem que comer merda. Alguém me salve!
A escola é um lugar de merda, não é? Bem, mas pelo menos tem umas gatinhas pra gente xavecar. Pelo menos tem a professora de biologia, que é uma delícia, apesar de chata. Tão novinha, peladinha deve ser linda... por que será que é tão chata? Deve ter um namorado de merda... Deve ser professor também o desgraçado.
Ah, pelo menos ainda nos sobrou a quadra de futebol, que mesmo toda fudida, dá pra gente disputar uns campeonatos. É divertido. Mas é pouco se você pensar direito: passamos boa parte de nossa infância e adolescência num lugar de merda desses... É triste na verdade.
Às vezes fico pensando, será que só as escolas brasileiras é que são uma merda? Acho que não. Nos States, primeiro mundo, a molecada fica tão de saco cheio da merda da escola que de vez em quando leva umas metralhadoras bem fudidonas e sai matando todo mundo. Gente doida, país de merda, não? Aqui no Brasil, que é mais de merda ainda, é diferente, a gente prefere pixar as paredes, quebrar as carteiras, os vidros, xingar as professoras, dar porrada nelas de vez em quando, mas a gente não mata ninguém com metralhadora, né? Isto é tarefa da polícia, não é verdade? Dessa polícia de merda....
E esses polícias de merda estudaram nas mesmas escolas de merda que a gente estuda. Será que tem a ver? E os outros bandidos também estudaram em escolas de merda. Tem a ver? Talvez, tudo tenha a ver, talvez nada. O que eu tenho certeza é de que esta escola é uma merda. Por quê? Porque eu não aprendo nada...  Eu só copio.


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Num futuro próximo...


Num futuro próximo... 

Após registrar a presença de seus alunos em seu diário de classe, o professor-filósofo pediu aos jovens que desligassem e guardassem seus aparelhos celulares em suas mochilas. Alguns poucos o fizeram imediatamente. Outros, a maioria, o fizeram somente depois de serem persuadidos pela argumentação do professor: a simples presença do aparelho sobre a mesa desvia a atenção dos alunos. Os demais, pouquíssimos, precisaram ser ameaçados: “vou te mandar para a diretoria”, ou ainda, “vou pegar o seu celular que só será devolvido a um de seus pais”.
Finalmente a aula foi iniciada. O professor-filósofo retoma a discussão das últimas semanas “a natureza humana segundo Jean-Jacques Rousseau”. Dois minutos depois, nota que um aluno já mexe em seu aparelho celular. O docente decide não agir e esperar para ver o comportamento dos demais. Aos poucos, com em uma epidemia, as mãos dos estudantes são tomadas pelos aparelhos. Em menos de dez minutos, a grande maioria é contaminada.
O professor, então, decide romper seu silêncio e se pronuncia, movido por um sentimento de obrigação: - Vocês realmente não conseguem, não é? Não conseguem ficar dez minutos longe desse miserável aparelho eletrônico?
Há um silêncio imediato, seguido de olhares medrosos. Os alunos sabem que desobedeceram a uma ordem e que podem ser punidos.
Um adendo. Não se assustem, caros leitores. Estes alunos estudam numa escola severa, onde as leis, normas e regras são seguidas com extremo rigor, às vezes até desnecessário. Lá as regras não são apenas um conjunto de palavras impressas numa folha de papel, afixadas em uma das paredes da instituição. Lá regra é regra. Seu não cumprimento é penalizado. Nesta escola, aluno bom é aluno disciplinado.  Dessa forma, os alunos não têm a sensação de que podem tudo, ao contrário. Revoltam-se por não poder nada. Escola certamente anacrônica. Noutra ocasião desenvolverei mais o assunto.
O professor-filósofo tem níveis baixos de obsessão por punição. Curioso por natureza, está mais interessado, por ora, em descobrir os motivos da dependência de seus alunos pelos tais aparelhos de telefone celular. Indaga-os e ouve as mais diversas respostas: “porque celular é legal”, “porque é importante para nos comunicarmos com os outros”, “porque o celular tem várias funções: dá pra ouvir música, assistir vídeos, entrar na internet, mandar mensagens, é da hora”, “porque se minha mãe precisa falar comigo, ela me liga”, entre outras.
Como supunha, nenhum aluno cita as funções de pesquisa, de busca por informações e conhecimento que um aparelho dessa espécie possui. Tampouco é citada sua função de calculadora, que poderia ser valiosa nas aulas de matemática ou física. As respostas restringem-se às funções de comunicação, mas, sobretudo, de entretenimento.
Embora reconheça a importância do lazer na vida dos adolescentes, isso ainda não explica tamanha dependência de um aparelho eletrônico. Por alguns instantes, o professor-filósofo mergulha em pensamentos: “por que tamanha obsessão por um celular? Serão as luzes piscantes, que hipnotizam? Ou a tela, que deve ter algum brilho especial que vicia, será possível? Será a câmera fotográfica? Ou a sensação de pertencimento ao grupo, gerada pelo aparelho? Ou ainda o status: eu tenho um aparelho, sou legal. Quanto mais caro meu celular, mais legal eu sou? Ou quem sabe a intimidade com aparelhos dessa espécie, essa geração passou mais tempo com um celular do que, provavelmente, com seus pais. Será isso?”
Eis que de repente, atordoado por suas meditações e sem pensar nas conseqüências de suas palavras, o mestre profere a infausta afirmação: - Eu não tenho um aparelho celular.
Breves segundos de silêncio. Os alunos se entreolham, apavorados, terrificados. Surge um ânsia instantânea, coletiva:  “Como?? Como pode?”, pensam, uniformemente.
A quem não presenciou a cena é praticamente impossível descrever o que se sucedeu. Revolta, gritos, caos, desordem, indignação. Harmonicamente, pensavam: “como pôde a natureza ter engendrado ser tão excêntrico? Não há mais limites para a extravagância humana? Como ousa, uma pessoa, um ser humano de carne e osso, sem celular? Impossível.”
E o professor, pego de surpresa, tenta se explicar. Utiliza seus melhores argumentos, mas ninguém o ouve. Vocifera, esbraveja, e quanto mais tenta, mais ensandecida fica a turba. Por fim, bate o sinal. A aula termina. Sai da sala aliviado por ainda estar vivo.
No caminho para casa, os rostos de repulsa voltavam-lhe à mente, a todo instante. Não conseguia esquecê-los. Brota-lhe, de repente, uma estranha ideia: escrever os seus argumentos contrários ao celular e lê-los para a turma na próxima aula. “Vou mostrar para essa molecada que a vida é muito mais que um aparelho eletrônico”, pensou.
Assim, elaborou uma lista com suas razões, intitulada: 27 motivos para não se ter um celular. Fez o melhor que pôde, utilizando a linguagem dos jovens para que o entendessem. E na semana seguinte, quando retornou àquela turma, retomou a discussão. Sabichão, sacou de sua pasta seu digníssimo texto, que leu em voz alta para os jovens.

27 motivos para não se ter um celular.

1º Você não gastará dinheiro com um aparelho. E não gastará dinheiro com outro aparelho daqui há alguns meses, quando o seu atual quebrar ou se tornar ultrapassado.
2º Você não gastará dinheiro com planos mirabolantes das empresas telefônicas.
3º Você não contribuirá com as empresas telefônicas, claramente desonestas, que prometem planos mirabolantes e não cumprem.
4º Você não ficará nervoso após horas e horas de espera tentando cancelar seus planos mirabolantes.
5º Você não terá que desligar o seu celular ao entrar no cinema, teatro, etc..
6º Você não atrapalhará as pessoas no cinema, teatro, etc, por ter se esquecido de desligar o seu celular.
7º Você não atrapalhará a aula atendendo aquela ligação “importantíssima”.
8º Você não incomodará o sossego de ninguém no transporte público por discutir a relação com seu/sua amado(a) via celular.
9º Você não incomodará ninguém no transporte público, ou mesmo em outros espaços públicos, ouvindo no alto falante de seu celular aquela música que só você acha legal.
10º Nunca ninguém ficará zangado com você pelo fato de você ter esquecido o celular desligado.
11º Você nunca precisará procurar um lugar para recarregar a bateria do seu celular.
12º Você não precisará procurar um lugar para por crédito no seu celular, nem deixará as pessoas da fila da lotérica, da farmácia, da PQP nervosas pela demora na compra dos benditos créditos de celular.
13º Você nunca colocará a sua vida, e as de outras pessoas, em risco, ao dirigir falando no celular, ou dirigir escrevendo mensagens SMS.
14º Você nunca ficará preocupado se alguém “está de olho” no seu celular “novinho”.
15º Você nunca ficará preocupado em perder seu celular “novinho”.
16º Você não sofrerá assaltos por conta do seu celular. Sua vida não estará em risco por conta desse ridículo aparelho eletrônico.
17º Você nunca ficará desesperado se o seu aparelho for furtado ou perdido.
18º Você nunca ficará desesperado por ter perdido TODOS os milhares de contatos da agenda do seu celular roubado ou perdido.
19º Você nunca vai pisar num cocô de cachorro porque estava andando enquanto escrevia  uma mensagem SMS (e nenhum outro acidente idiota deste tipo, vai dizer que não acontece?).
20º Você não ficará ansioso se a bateria do seu celular estiver acabando e você estiver esperando uma ligação importante.
21º Você nunca se julgará um “idiota” por ter ido viajar e ter esquecido o carregador da bateria do seu celular.
22º Você não estará sempre “disponível”, isto é, ligado o tempo todo ao resto do mundo (privacidade é bom de vez em quando).
23º Você nunca se sentirá um “otário” por ter comprado um aparelho que não funciona conforme o prometido. Nem vai perder tempo tentando aprender a utilizar aquelas funções mirabolantes do seu celular “novinho”.
24º Você nunca irá usar seu celular para tirar aquelas fotos ridículas na frente do espelho, em que se faz biquinho, ou qualquer outro tipo de pose idiota, que só você acha sexy.
25º Você nunca irá deixar a pessoa com quem você está conversando te esperando enquanto você responde aquele SMS “importantíssimo”.
26º Você nunca deixará de prestar atenção em algo importante por estar com os olhos grudados no seu celular.
27º Você nunca se viciará no seu celular, ou nas tranqueiras coloridas e barulhentas que ele pode te proporcionar. Enfim, você terá mais tempo para viver.

Ao final da leitura, a maioria dos alunos estava com cara de tédio. Alguns bocejavam, outros checavam seu celular. Outros olhavam para o vazio, pensando em como seria estar em casa, desfrutando de sua cama e de seu travesseiro. Apenas uma garota, uma quieta porém perspicaz menina da primeira fila, olhava com astúcia para o mestre.
A princípio, o professor-filósofo não entendeu a reação da classe. Tinha certeza que seu texto criaria novo tumulto, revoltas ainda mais tempestuosas. Ele até tentou estimular a turma, provocando-os com novos questionamentos sobre o assunto. Hoje estava pronto para briga, tinha certeza que ninguém o venceria. Em vão. “Venceu” por W.O.. 
No caminho de volta para casa, pensando em toda a situação, concluiu: “essa é a geração do tédio, e não do celular. Não se motivam por ideias, não se apegam racionalmente às coisas, são basicamente seres pulsionais. Vão da euforia à indiferença, da inação à hiperatividade velozmente. Mas nada lhes pertence. Surpreendem-se com o diferente, é verdade, revoltam-se até. Mas é tudo instintivo, tudo efêmero e descartável. Só o tédio lhes é visceral.” Então, lembrou do rosto da garota quieta e perspicaz. Seu olhar tinha um brilho de inconformidade, uma luz que irradiava discórdia, ainda que contidamente. Por fim, o professor-filósofo sorriu. “Nem tudo está perdido”.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Seu Seleno


Seu Seleno

     O assunto mais recorrente na sala dos professores, durante os intervalos principalmente, é o comportamento dos alunos. Fala-se sobre indisciplina, falta de educação e desinteresse discentes. Culpabiliza-se, geralmente, a “família”, instituição julgada como entidade metafísica, universal, onisciente e onipotente. Atribui-se a ela, ou melhor, à “recente” perda de seus poderes divinos, o fracasso dos alunos, tanto do ponto de vista pedagógico, quanto do comportamental. Contudo esta não é a única explicação. Também os alunos, seres dissimulados, senhores de si, indivíduos maduros e responsáveis, que estão na escola sei lá fazendo o que, diante de tal nível de desenvolvimento, são responsabilizados pelo seu fracasso. Em resumo, a lógica do sucesso e do fracasso impera no árido solo da pedagogia brasileira. 
Mas este não era o caso da Escola Estadual Prof. Judas Iscariotes de Oliveira. Pelo menos não nas últimas semanas. A recente chegada de seu Seleno, funcionário da Diretoria de Ensino designado para a função de Agente de Organização Escolar, mexia com os instintos especulativos do corpo docente. Os motivos: seu Seleno não tinha “perfil” para trabalhar como inspetor de alunos. 
Chegaram a essa conclusão logo em sua primeira semana de trabalho. Nos três primeiros dias, seu Seleno chegou atrasado. Deveria apresentar-se na escola às 6:40, arrumar-se rapidamente, e abrir o portão para a entrada dos alunos, às 6:50. No primeiro dia chegou às 7 horas, atrasando a entrada. No segundo dia, conseguiu chegar às 6:50, o que também descumpria as ordens da diretora. No terceiro, voltou a chegar às 7 horas.
A diretora, insatisfeita com a situação, sabia que se seu Seleno não abrisse o portão no horário, os alunos entrariam atrasados, o que prejudicaria a primeira aula da manhã. A escola não dispunha de outro funcionário para cumprir essa função, seu Seleno vinha, especificamente, para ficar no lugar de dona Aurora, antiga inspetora que acabara de se aposentar. Assim, a diretora chamou o recém-chegado para uma séria conversa. Após a exposição dos fatos e de suas conseqüências, que seu Seleno mal ouviu, pois pensava no jogo de futebol que ocorreria naquela quarta, à noite, a fina senhora exclamou: – Portanto, se você voltar a se atrasar, eu vou até a Diretoria de Ensino pedir a cessação da sua designação! – A rispidez da voz e a fúria no olhar da diretora trouxeram seu Seleno de volta à realidade. Não se explicou, apenas respondeu: - Dona Diretora, isso não vai voltar a acontecer!
Seu Seleno era lento no andar, seus pés sexagenários doíam quando caminhava, atrapalhando a agilidade que outrora tivera. Gabava-se, inclusive, de ter sido “jogador” de um clube do interior de São Paulo na juventude. Um “beque dos bons” dizia, que teria até mesmo enfrentado Pelé num jogo válido pelo Campeonato Paulista, no início dos anos 70. Além da dor, e das míticas histórias contadas ao colegas de bar, havia sua condição financeira precária e o descaso consigo próprio. Ambos impediam que o homem procurasse um médico para examiná-lo. Morava só, numa modesta casinha na periferia de São Paulo, há cerca de três quilômetros da escola em questão. Não tinha amigos, apenas “conhecidos” na região.
  Decidiu que na manhã seguinte pegaria um ônibus ao invés de caminhar, mesmo que isso ocasionasse importante diferença em seus rendimentos mensais. Mas ponderou: “melhor ir de ônibus e continuar trabalhando, do que perder o trabalho e ficar mais fodido ainda de grana. É, melhor mesmo...”. Por fim, passou a chegar no horário, atrasando-se mais raramente.
Os atrasos não eram os únicos obstáculos de seu Seleno na função. Todos consideravam-no figura repugnante. Primeiro pelo aspecto físico: um homem de sessenta e poucos anos, banguela, careca, de olhos ligeiramente esbugalhados e volumosa barriga. A isso, acrescente-se roupas sujas, fedidas e rasgadas, como uma camisa do Corinthians comprada provavelmente num camelô na década de 90, e o odor quase natural de cachaça que exalava, gerado não só pelas doses do desjejum, como também pelos grandes goles ingeridos à noite, antes de cair no sono. A idade, o cansaço e sobretudo as noites de pouco sono davam-lhe grandes olheiras, que contribuíam para sua feiúra.
Além do aspecto, também julgavam-lhe mal pelo modo peculiar no trato com as pessoas. Por exemplo, aos alunos que dele zombavam, respondia com - Vai pra puta que pariu, filho de uma quenga véia! – A frase, repetida incansavelmente com voz ligeiramente rouca e vacilante, revelava um estado crescente de senilidade, o que divertia os alunos mais sádicos. Estes, engajavam-se em criar novos apelidos para o velho. – Esse é da hora, rárárá, o véio doidera vai ficar muito puto!
Tratava distintamente professores e professoras. Com os homens, esforçava-se para ser amigável, contando-lhes piadas e “causos” antigos. Com as professoras, era galante e gentil, - É assim que a gente tratava as mulheres antigamente – contava aos colegas do sexo masculino. Por vezes, e preferencialmente às professoras mais velhas, soltava alguns elogios, que eram imediatamente rechaçados com olhares de reprovação, “Se toca, velho fedido”, pensavam algumas.
Mas seu Seleno não tinha intenção de amizade, amor ou sexo. Seguia um protocolo de educação básica que aprendera há algumas dezenas de anos. A escolha pelas mais velhas, por exemplo, baseava-se na crença de que elas entenderiam este protocolo. Tinha uma mente antiga, valores e costumes antigos.
Não se incomodava com os juízos negativos dos colegas de trabalho. A propósito, fechara-se de tal modo para essa espécie de crítica que elas simplesmente pareciam não existir. Era, por esse e outros motivos, ser extremamente alegre, sorridente. Sempre a cantarolar melodias de Nelson Gonçalves e Ataulfo Alves. Divertia a criançada da escola dançando comicamente enquanto entoava as canções. Não partilhava daquilo que costumeiramente chamamos de “bom senso”, ou ainda, “senso de ridículo”. Há tempos abandonou a capacidade de se auto-envergonhar, conquista potencializada pelo alcoolismo. 
Como dito acima, transformou-o em pessoa mais comentada na sala dos professores, durante o intervalo. As professoras, em especial, riam de seu jeito extravagante, deploravam seu fedor, suas roupas sujas e rasgadas, reclamavam de seus galanteios e dos xingamentos proferidos aos alunos. Especulavam se não tinha esposa, se morava sozinho, se tinha parentes próximos, enfim, algo que se possa chamar de família. - Como uma pessoa chega a tal estágio? – Indaga uma. – Excesso de pinga – responde outra.
Os professores são mais complacentes. Há alguns que até simpatizam com seu Seleno, mas não manifestam publicamente esse afeto. Comentam suas piadas, seus jargões, seus “causos”.  Chegaram inclusive a pesquisar nos sites futebolísticos da internet, se seu Seleno fora realmente jogador de futebol. Nada encontraram.
O que ninguém sabe, ou desconfia, é que Seleno foi casado, e teve um filha, falecida aos 10 anos, vítima de um tumor no cérebro. A perda da garota, considerada por tempos, pelo pai, alegria e razão de sua vida, deixou uma marca incurável em sua alma. Tentou afogar essa perda com o álcool. Nada feito. Perdeu a esposa, sucessivos empregos, a dignidade. Por anos, viveu nas ruas, a esmo, perambulando. Tateava um novo sentido para sua mal-tratada existência, mas esbarrava sempre na memória da filha perdida. Abandonado pelos amigos, pelos poucos parentes próximos, seu Seleno passou a mendigar, ou a fazer serviços braçais em troca de cachaça. Pouco comia. Sempre se embriagava. Mas a filha morta nunca voltava. Por fim, entendeu que a morte é eterna.
Aos poucos e muito lentamente, se refez. Tijolo por tijolo, construiu uma poderosa muralha mental contra tudo que lhe era nocivo. Nada mais o afetava, a não ser as crianças, que de um modo geral, encarnavam a figura da filha. Nunca foi capaz de se imunizar contra os choros e os sorrisos, os insultos e elogios, as tristezas e alegrias das crianças. Através delas, sentia-se ligado à querida filha perdida. 
Seu Seleno se reergueu. Demorou, mas acabou por encontrar paz interior e a vontade de seguir a vida. Decidiu que até o fim trabalharia em escolas, para estar sempre próximo às crianças. Conseguiu trabalho numa Diretoria de Ensino, contratado como ajudante de serviços gerais. Prestava serviços de manutenção dentro das escolas. Durante alguns anos, desempenhou bem a função. Até que prestou concurso para agente de organização escolar. Ficou mal-classificado, mas acabou sendo chamado, devido ao excesso de vagas e à rotatividade das pessoas no cargo, talvez devido à natureza do trabalho (vigiar os alunos) e ao salário miserável. 
Seu Seleno passou por diversas escolas, mas seu temperamento desleixado não o permitia ficar por muito tempo em nenhuma delas. As pessoas se irritavam, e ele era “devolvido” para a Diretoria de Ensino, que o empurrava para alguma outra escola que reclamava por falta de funcionários, fato bastante comum nas escolas paulistas. Acabou passando um tempo mais prolongado nessa escola, pois, ainda que fosse desmazelado, cumpria sua função.
Nunca esqueceu sua filha, logicamente, mas voltou a ser o espírito alegre de tempos antigos. E apesar dos pesares, é possivelmente a pessoa mais feliz com seu trabalho lá. O baixo salário não é tão relevante. E ao contrário dos professores, dos demais funcionários da escola, da direção e até mesmo dos próprios alunos, sente prazer infindável em contemplar o sorriso das crianças, que, como pensa, é “a coisa mais pura e bonita do universo”. É o que lhe vale. 

terça-feira, 7 de maio de 2013

Qual é o sentido disso?


Qual é o sentido disso?


O barulho irritante do despertador acorda o professor-filósofo para mais um dia de trabalho. Trágica rotina. Professores-filósofos detestam acordar cedo. Daria tudo para continuar dormindo até às dez, quando os raios solares penetrariam as frestas da janela de seu quarto, acordando-o naturalmente.
Mas levanta-se, morosamente, cambaleante, e sem pensar. Veste-se e abandona o quarto o mais rápido possível, para não ceder à tentação do sono. Come sem vontade, fazendo enorme esforço mental para resgatar as agradáveis imagens do sonho há pouco interrompido. Tenta juntar os fragmentos, atribuir algum sentido àquelas visões estilhaçadas de suas experiências passadas. Acaba distraindo-se com a sensação arrebatadora de sono. Deixa a casa. 
Vai caminhando ao trabalho, refletindo sobre a existência, seus projetos e conquistas. Em sua mente toca uma canção antiga, acolhedora e melancólica, que dá tom ao seu estado de ânimo. - Only the lonely, only the lonely! - repete seguidamente.  Aperta o passo para não se atrasar.
No portão da escola, encontra a coordenadora-pedagógica. Sua voz rouca grita aos alunos: - Mais rápido, andem mais rápido que o portão vai fechar! - Cumprimentam-se com certa afabilidade.
Na sala dos professores pega o seu material: diários, livros, giz. Fala “bom dia” a alguns, ignora outros sem motivo, a não ser por sua timidez inata.
Olha ao redor, a sala é ampla, mas os professores estão espalhados, embora agrupados estranhamente, por idade, gênero e disciplina que lecionam. Conversam sobre banalidades, como os acontecimentos do fim de semana, os resultados do futebol, ou a entrevista da celebridade x no programa televisivo y. Assoberbado, evita participar de conversas dessa natureza. “Que gente besta”, pensa.
O seu caminhar em direção à sala de aula é atrapalhado por diversos alunos que brincam, se batendo e se empurram, gritando e gargalhando. Isto traz lembranças imediatas ao professor-filósofo, lembranças de seus tempos de juventude. Acaba por considerar seus alunos exageradamente infantis.“Será que quando eu era moleque eu era tão bobo assim e não sabia? Todo mundo já foi bobo um dia. Mas eu não era bobo assim. Nem fudendo!”.
Na sala de aula, a rotina diária se repete. - Pessoal, atenção à chamada, silêncio por favor. – A seguir, números ditos em voz alta misturam-se a demais vozes que não cessam, bocas que não se calam, ruídos que não findam. “Há sentido nessa merda? Por que continuar com isso? Não dá pra ser diferente”, pensa, enquanto continua chamando os alunos e registrando a presença no diário. Terminada a “chamada” a aula se inicia.
O plano de aula é o de entregar as provas corrigidas, mostrar quais as respostas certas e porque os alunos erraram tantas questões. Pretende ainda discutir mais aprofundadamente os resultados e orientá-los para que o mesmo não se repita no futuro próximo.
Entretanto, tem consciência de que esse plano de aula não faz sentido. O motivo principal: a prova foi aplicada há mais de um mês, e os alunos já não lembram mais do texto, tampouco das questões. O professor justifica-se propondo um problema matemático aos jovens: - Tenho mais de quatrocentos alunos. Levo cerca de cinco minutos para corrigir cada prova. Qual é o tempo total, em horas, para a correção?
Alguns quebram a cabeça, utilizando seus idolatrados aparelhos eletrônicos inúteis para resolver a questão. O professor-filósofo zomba deles: -Vocês são escravos de objetos fúteis. É a mente que opera os instrumentos e não o seu contrário. Primeiro desenvolvam suas mentes. Depois, utilizem seus instrumentos. - O professor-filósofo tem certeza de que os jovens não entenderam sua crítica, julgando-a como um simples sermão, ou pior, reles rabugice de velho. Mas dá de ombros.
Por fim, chegam ao resultado: cerca de trinta e três horas foram necessárias para a correção dessas provas. O professor termina seu argumento, com mais uma equação matemática: - Considerando que o governo me paga apenas duas horas semanais para eu trabalhar em casa, em quantas semanas eu deveria ter que devolver essas provas corrigidas para vocês, sem ter de trabalhar de graça? – Agora as respostas vêm com maior rapidez. O professor-filósofo resmunga mais algumas palavras contra o sistema de ensino. Mas logo para, quando percebe que os alunos não estão interessados em saber disso.
A prova aplicada há um mês consistia em cinco questões de interpretação sobre trecho da Ética a Nicômaco de Aristóteles. O texto fora lido e relido em sala de aula, interpretado minuciosamente em trabalho coletivo entre os jovens e o professor-filósofo, e para surpresa do mestre, os resultados da avaliação demonstram que o texto não havia sido compreendido pela maioria dos alunos. Cerca de quarenta por cento dos alunos tiveram notas abaixo da média. Cinqüenta por cento tiveram notas iguais ou um ponto superior à média, que é cinco. E somente dez por cento, isto é, quatro alunos, tiveram notas consideradas satisfatórias pelo professor.
Enquanto mostrava quais eram as respostas corretas para as questões, e tentava encontrar os motivos para tantos erros, sentia no olhar dos jovens desdém, desprezo, uma certa arrogância. “Isso não faz sentido”, pensava. “O que faz então? Nada faz sentido a esses garotos. A não ser celulares e outras quinquilharias eletrônicas, a aparência física, o futebol e a música a outras. E de nada adianta desconstruir esse jeito de ser: adolescentes dificilmente admiram-se com a consciência de sua idiotice”.
Apesar do desinteresse pelas “respostas certas”, os jovens esperam avidamente pelas provas corrigidas. Não porque pretendiam reavaliar o que não aprenderam, mas pela expectativa de saber a sua nota, valor numérico gravado geralmente no canto superior direito da folha de prova com caneta esferográfica vermelha. Por alguns segundos o professor tenta definir mentalmente o conceito de “nota”: “símbolo, alegoria, metáfora, que designa a ‘virtude’ de um aluno em desempenhar uma tarefa por intermédio de um valor numérico dado dentro de uma escala de zero a dez”.
O professor-filósofo pensa na ineficácia desse método, pois estimula tão somente a valoração por intermédio de escalas numéricas. “Desse jeito as pessoas têm um valor, de acordo com suas habilidades em desempenhar tarefas. Em última análise, esse sistema não se difere do sistema capitalista, pois acaba por determinar que os seres humanos diferenciam-se de acordo com o valor de mercado que têm. Produzimos objetos para nosso consumo, mas no fundo, também somos objetos de consumo, etiquetados com um preço, o que alguns chamam de salário”.
Todo esse devaneio se dá durante o processo mecânico e interminável de explicar os argumentos de Aristóteles presentes no texto. Tudo se repete na próxima aula, e de novo, nas demais aulas do dia, seis no total. Pouco muda entre uma turma e outra. Alguns alunos são mais simpáticos e falastrões, outros menos. Mas a dinâmica, as relações, o desprezo pelo conhecimento e ânsia pelos resultados é a mesma.
O professor-filósofo deixa a escola extenuado. Ao pisar fora do edifício, o sono retorna, de imediato. A fome, até então adormecida, acorda para revirar-lhe o estômago. Only the lonely volta a tocar em sua mente, e uma questão insiste em atormentar-lhe: “faz sentido continuar com isso?”.

Sejam bem-vindos!!

Olá. Meu nome é Isaac Vieira da Silva, tenho 31 anos e sou professor de filosofia da rede estadual de São Paulo. Atualmente, faço mestrado em filosofia na USP, onde estudo a obra pictórica de Jheronimus Bosch. Além disso, toco numa banda de rock chamada Traumas e sou casado com a Michelle, minha amada e querida companheira. Temos dois filhos: uma canina chamada Layla e um felino chamado Sig.
Desde que comecei a dar aula na escola pública, em agosto de 2005, tive vontade de escrever textos narrando minhas experiências. A escola, com suas práticas, seus habitantes, e o mais importante, com todo o conhecimento que ela produz (ou deveria produzir), sempre me encantou. Tanto que nunca consegui me desligar dela... Há quase trinta anos freqüento diariamente instituições de ensino, em todos os seus níveis. 
Como dizia, sinto uma necessidade crescente, quase que uma obrigação, de narrar, pensar, discutir a escola e suas práticas. Mas não com o enfoque acadêmico, rigoroso e engessado. Quero mostrar as vísceras da escola e de suas personagens, suas contradições, angústias, anseios, dar voz a professores e alunos, denunciar práticas abusivas, louvar ações positivas. Enfim, objetivo refletir sobre as práticas de ensino, indagar sobre os métodos de avaliação, mas sem esquecer do caráter humano, dos sentimentos e afetos que permeiam as instituições escolares. Para tal, o farei através de narrações, nunca dissertações, misturando realidade e ficção, experiências verídicas e inventadas, reflexões próprias e de outros...
Tentarei escrever ao menos um texto por semana, no contra-turno dos meus estudos e trabalho, algo como um hobby sério. É também uma tentativa minha de por fim a esse vício alienante chamado facebook.
Bom, divirtam-se.
Aguardo críticas.
Obrigado.