terça-feira, 24 de setembro de 2013
O ex-
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
Café-com-professores
Café-com-professores *
- Nossa
Fernanda, que lindo!! Onde você comprou?
- Ah, eu não
agüento mais aquela bicha do 1ºC. Hoje eu falei pra ele: “Sabe do que você
precisa? De uma rola bem grande pra virar homem!”
- Esse
sindicato é um bosta! É só politicagem. Não querem saber da gente...
- Comprei no shopping. E
vocês não acreditam quem eu vi ontem naquele shopping novo que inaugurou, o
Thiago Lacerda!
- Quem quer
café?
- Ah, eu não
vejo a hora de acabar meu estágio probatório! Depois disso não vou mais engolir
sapo!
- Não acredito
que você disse isso pra um aluno!!
- Ah, eu
agarrava ele, hehe..
- Ah, vocês
viram a roupa da Jennifer da 8ª A? Deve ser DASPU. Perguntei pra ela se não
tinha vergonha de sair de casa vestida desse jeito.
- Falei! Ah,
que moleque folgado! Queria ficar dançando funk no meio da minha aula. Toda
semana é a mesma coisa, não agüento mais! Como ele é vulgar! Não consigo dar
aula desse jeito. Acho que exagerei, mas chega uma hora que não dá mais pra
segurar.
- Quem quer
café?
- O que tem de
lanche hoje? Sobrou pra mim? Ah, tinha que ser o Jacques! Ele come todo o
lanche, não deixa nada pra mim! Jacques, você me paga viu!
- Que nem eu!
Eu não tô nem aí pra essa diretora! Tudo que ela fala eu faço ao contrário.
- É... O
problema é que se a gente não apoiar o sindicato estamos perdidos, ninguém mais
vai brigar pela gente.
- Alguém mais
quer café?
- Não fui eu!
Eu não como presunto!
- Ah, nem me
fale! E eu queria tanto ir embora hoje! Não agüento mais dar aula praquela 8ª
B. Ainda bem que o ano está acabando!
- Ah, fala
baixo, ela vem vindo!
- Professores,
desculpe interromper o café de vocês mas tenho uma coisa muito séria para
falar! O aluno Marcelo do 1ºC veio junto com a Débora, a monitora da classe,
fazer uma reclamação muito grave. Disseram que hoje, durante a aula, uma
professora o ofendeu utilizando linguagem chula e grosseira, coisas tão
horríveis que eu não vou repetir aqui. Eu já tive uma conversa com a professora
e quero dizer para vocês: pelo amor de Deus! Nunca digam palavrões para os alunos,
nunca xinguem os alunos. Por mais filhos da puta que eles sejam, controlem-se!
- O café está
acabando.
- Todos nós
aqui somos professores. Temos que dar o exemplo, temos que manter a compostura,
ou então nos igualamos a eles e perdemos a razão. Peço que quando algo
acontecer, quando eles te tirarem do sério, se acalmem. Se estiverem muito
nervosos, chamem a inspetora, deixem a sala, tomem uma água, relaxem. Se for o
caso, nem precisam voltar pra sala de aula. Mas o mais importante: não xinguem,
não digam palavrões para os alunos! Por favor! Isso pode custar um processo
administrativo para vocês professores e para a escola, podemos até perder
nossos empregos.
- É, eu acho
que você está correta D. Marli.
- Eu nunca
xinguei os meus alunos.
- Bom, este era
o recado que eu queria dar. Podem voltar ao café.
- Gente, mais
alguém vai querer café? Está acabando? Posso pegar tudo?
- Vi um
receita ontem na Ana Maria deliciosa. Panettone trufado.
- Então, como
eu estava falando, vi o Thiago Lacerda no shopping. Ahh.. Que homem! Meu deus! Tava com uma loira
aguada, deve ser a mulher dele.
- Ah,
o viadinho foi falar pra diretora! Tá ferrado, agora sim que eu repito ele de
ano!
TRRRRRRRRRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMMMMMMMMMMM
- E você viu a
nova do Serra? Quer que os professores façam prova pra ganhar aumento! Muito
filho da puta, né?
- Nossa,
panettone trufado, você anotou a receita, depois me passa?
- Esse ano não
acaba! Quero ir pra São Sebastião passar o natal com o meu pai. Adoro praia.
- Jacques, da
próxima vez você deixa um lanche pra mim.
- Gente, o
sinal já bateu, vamos descer?
- Ele está na
nova minissérie, né? Adoro ele.
- Ixi, o café
acabou.
- E o
desgraçado quer ser presidente. Alguém podia dar um tiro nele!
- E vocês
viram aquela Stephanie do 3ºB? Está com ataque histérico hoje, não pára de
gritar! Ô menina insuportável. Ainda bem que o ano está acabando.
* Conto escrito há alguns anos. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
Atacar!
Atacar!
Semanalmente
o professor-filósofo, além da estafante carga-horária de aulas mal remuneradas,
enfrenta uma temível reunião pedagógica chamada HTPC. A estranha sigla, que lhe
fora apresentada anos atrás como “Hora
de Trabalho Perdido Coletivamente”, revela a intenção de uma boa alma do
passado de fomentar o trabalho pedagógico coletivo. Entretanto, não é o que se
passa na Escola Estadual General Costa e Silva, onde trabalha nosso herói.
Com bravura
e um tanto de sono, enfrenta o temido HTPC. A saber: o sono provém da digestão
iniciada há pouco, o que se impõe como o primeiro dos grandes desafios do
professor neste início de tarde – vencê-lo. Lembremos que professores-filósofos
detestam acordar cedo, e após seis longas aulas, em salas quentes e apertadas,
apinhadas de adolescentes barulhentos, tudo o que o professor deseja é um sofá
para recostar, e uma televisão para assistir um fútil programa futebolístico, a
fim de esvaziar sua mente das vozes ecoantes dos alunos. O sono seria a sequência
natural nessa série de eventos, uma deliciosa retomada dos sonhos noturnos, interrompidos
pelo barulho estridente do despertador, horas antes. Entretanto, hoje não os
tem, o sofá, a TV, o sono, os sonhos.
Cabe-lhe quarenta minutos para tapar o buraco do estômago, corroído pelo café
do intervalo e retornar à escola, onde a reunião se inicia.
Seus
colegas professores marcham rumo à sala de reuniões como soldados marcham em
direção ao campo de batalha. A sensação de dever paira no ar, a consciência do
soldado numa guerra que não é a dele é evidente: "que diabos estou fazendo
aqui???" Aos poucos, cada um se posiciona. A batalha tem início. É conduzida
pelas hábeis mãos da coordenadora-pedagógica, uma jovem senhora, disposta e
idealista, que angustiada, como os demais, busca respostas para a insolúvel
questão: “o que fazer para melhorar o rendimento de nossos alunos?”
Os soldados
não respondem imediatamente. A questão paira no ar como um míssil teleguiado que os atingirá a qualquer momento. Enquanto não os acerta, outras informações, os ditos “informes”, são
dadas. É talvez a etapa mais enfadonha, e de maior agonia. Todos sabem que o
míssil os espreita. Mas têm de ouvir aos comunicados chatíssimos da Diretoria
de Ensino. O conteúdo: cursos de formação continuada docente, ou "atividades de
perfumaria", como gosta de chamar o professor-filósofo, em que os professores são
convocados a partilhar suas experiências mediados por algum especialista de
plantão. Fala-se em vão, e todos têm a sensação oculta de que o fazem para
matar o tempo. Enfim, matam-no. E embora seja assim, há professores que apreciam tais atividades,
pois ao participar, são desobrigados a “dar aula”, o que de
certa forma, quebra-lhes a massacrante rotina. Nosso bravo soldado prefere
estar junto de seus alunos adolescentes. Com eles aprende mais, e quando não,
diverte-se.
Enfim o míssil
cai: o que o corpo docente pode fazer para melhorar o rendimento dos alunos? Impõe-se
então a segunda grande missão do professor-filósofo: manter-se calado. Depois
de tantos anos de escola pública desenvolveu um profundo ceticismo em relação a
qualquer tentativa de diálogo. Sabe de cor a fala dos colegas, seus argumentos
e refutações. E mesmo que seja novo nesta escola, lá leciona por pouco mais de
um ano, a partir de uma indução empírica, concluiu há algumas semanas que todas as escolas se
assemelham nesse quesito. Logo, não mais acredita na possibilidade de mudança. Não com essas ideias.
Não com essa estrutura.
A irritação
do professor-filósofo se dá pelas ideias pedagógicas, se é que podem ser assim
chamadas, que são novamente retomadas. Estas, giram em torno de dois verbos,
diagnosticados por Foucault há cerca de quarenta anos:
vigiar e punir. De acordo com essas diretrizes, a função primordial da escola
não é a de ensinar conteúdos, ou desenvolver habilidades discentes, mas sim a de
introjetar nos indivíduos a lei. E como se faz isso? Através da reflexão, do
amadurecimento, do gradativo crescimento individual, rumo à tão almejada
autonomia? Não. A introjeção das leis é realizada pela repressão.
É a ideia
“educacional” em voga no mundo ocidental no últimos 300 anos, segundo o referido filósofo. Obviamente, o mundo não é o mesmo, as
estruturas, os poderes, e tampouco os sujeitos são os mesmos. Mas permanece a
ideia de controle, que se aplica sobre os alunos, primeiramente sob a forma de
um calhamaço de regras, ditas "disciplinares". Tudo é controlado: o tempo, pela
obsessão com os horários de entrada e saída, das trocas de aula, do intervalo, da
realização das atividades pedagógicas, etc...; o espaço, pela determinação de
que tais indivíduos devem ser confinados em determinados lugares (salas de
aulas, pátio, quadra de esportes, etc), em determinados períodos; os ânimos, pela imposição de
determinadas posturas discentes, como o interesse, os bons modos, a vigília
contínua, a postura (corpo ereto e prontificado) o não esquecimento do material didático-pedagógico, a disposição para
a realização das atividades, o não
envolvimento em brigas, etc...; as vestimentas, pela imposição do uso de
uniformes, e proibição de certas peças, como bonés, lenços, óculos escuros, blusas de cores berrantes, etc...; além do controle da fome, das necessidades fisiológicas, etc, etc, etc. O que está por trás de tudo isso, segundo o Foucault, é o condicionamento
destes indivíduos ao mercado de trabalho, ao capitalismo puro e selvagem, onde
permanecerão por 30, 40, 50 anos. A
escola serve como amansadora das feras humanas, a adestradora dos
espíritos revoltos, a instituição que preparará a todos para os insuportáveis e
infindáveis anos de exploração (voluntária ou obrigatória?) que virão. Diagnóstico
tenebroso.
Tendo disso consciência, o professor-filósofo se corrói internamente quando, semanalmente, depara-se com os relatos de seus colegas acerca da atual crise educacional
brasileira. As explicações são as mais diversas, e vem em forma de descarrego
catártico, com data, hora e local marcados. A maioria dos colegas professores (sim, felizmente, não são todos) purificam-se e eximem-se culpando a família, a progressão continuada, a
tecnologia, as drogas, a mídia, a sociedade e a decadência dos valores
tradicionais, enfim. Culpados não faltam para explicar o baixo rendimento
discente. Mas louvam, e ai de quem ousar discordar!, a tão amada e adorada
disciplina. Assim, as ordens da instituição escolar, personalizadas na figura
da coordenadora-pedagógica, repetem infindavelmente um discurso disciplinante: temos que respeitar os
horários, não podemos permitir que os alunos façam isso ou aquilo. Por fim, redefine-se
a atuação do professor, ou ao menos, incumbe-lhe de mais uma função: a de uma
espécie de fiscal, e, ou, por quê não, de carcereiro? Numa instituição
disciplinar, todos são vigiados. Todos serão punidos. Inclusive os mantenedores
da ordem.
Porém, ainda não chegamos na crise. Para muitos, e para o desespero do professor-filósofo, o disciplinamento é a
solução. De fato, se houvessem funcionários em número suficiente, e dispostos a
dar o sangue, a “vestir a camisa”, (entenda-se, bem remunerados e doutrinados),
é possível que esta instituição disciplinar desse o resultado de décadas atrás. Mas e o saber, e o conhecimento? Alguém ousa discuti-lo? Não. A escola
que tem como base tão somente a disciplina é como um esqueleto sem músculos, não
se sustenta. Todos
esquivam-se do míssil do conhecimento. Na escola, lendariamente o lugar do
saber, pouco se fala de pedagogia, métodos de ensino, didática, estratégias de
aula, modos de avaliação, e o mais importante, os princípios que fundamentariam
estas práticas. Com isto, os alunos tornam-se números. O que importa é seu
rendimento numérico, os famosos índices, que florescem pífios, por esses, e tantos outros motivos. Aí está de fato a crise: todos concordam que é preciso melhorar a educação, mas não se consegue propor nada que difira de práticas disciplinares. Ó disciplina, deusa redentora!
Após
sobreviver a mais essa batalha campal, a mais esse bombardeamento disciplinar
semanal, nosso herói deixa a escola e segue caminhando para sua morada. Pondera
sobre a necessidade da disciplina. “Claro, a disciplina por si só não é ruim.
Mas ela não pode ser a única função da escola. Ensinar ao aluno como ele deve
ser é muito fácil. Controlá-lo também, impor limites. Mas isso basta? Gostaria de ver essa molecada entendendo de fato o sentido
das leis, porque elas existem e porque são necessárias. Isto é autonomia.”
Continua
sua caminhada, sendo tomado por sentimentos amorfos e contraditórios. Distingue um, o sentimento
de tristeza pelos seus colegas professores. Não pelo fato deles legitimarem uma
prática inútil e ao mesmo tempo nociva aos alunos, mas principalmente por eles,
professores também, não notarem que suas ações têm sido tão improfícuas e
vazias, e que juntos, falando a mesma língua, poderiam fazer mais. Reavalia. Parece haver algo maior que ultrapassa a
todos. Não tem certeza do que ainda. Não guarda rancor da coordenadora-pedagógica,
pois compreende que seu autoritarismo é o único recurso que tem. Acredita que
no fundo suas intenções são boas, embora
ineficazes, e que tem feito o melhor que pode.
Mas o pensamento que realmente lhe pega, que lhe
aflige, é o do sentido da profissão, diante de previsões futuras nada animadoras.
“O que fazer? Escrever livros não muda as coisas. Reações violentas ou suspensão do juízo?
Quero contribuir, de alguma forma, mas como? Eureca! Construir mísseis!”
quarta-feira, 29 de maio de 2013
Fezes pedagógicas
Fezes pedagógicas
Vocês
já perceberam que esta escola é uma merda? Já? E já perceberam que todas as
outras escolas, particulares ou públicas também são uma merda? Por que será?
Vocês
já se perguntaram que merda vocês estão fazendo aqui, porque vocês têm que
fazer esse monte de merda chata, coisas que nunca fariam por vontade própria? E
essas merdas de regras idiotas, tipo, “não pode chegar atrasado”, “não pode
falar ´merda` na sala”, “não pode mandar a professora ir à merda”, vocês já
pensaram por que temos que obedecer essa merda toda?
Quem
nunca se sentiu infeliz com a merda da escola que levante a mão! Quem nunca
quis mandar a professora de história ir à merda, quem nunca quis enforcar
aquela merda de diretora?
E quem
nunca ficou puto com aquela velha história de merda “se você não estudar, você
nunca será nada na vida!”? Que papo de merda. “Os Ronaldinhos”, mal sabem
escrever e hoje estão lá na merda da Europa, morando em castelos, andando de
Ferrari, comendo umas minas gostosas (às vezes até uns travecos feios de
merda), ganhando milhões de dólares com seu emprego super-divertido “jogador de
futebol”. Que merda! Não precisa
estudar pra ser jogador de futebol. Pra que estudar?
E quem
nunca ficou puto em ter de acordar cedo pra vir à escola fazer uma merda de
prova que só serve pra você tirar uma merda de nota? Daí no final do ano você é
promovido e no ano que vem tem de fazer de novo tudo a mesma merda? Não é
assim?
E quem
nunca teve vontade de cabular, e quem nunca cabulou? Quem não prefere Educação
Física àquela merda de aula de Matemática? Quem não odeia aquela merda de aula
de química, com aquele monte de elemento que no fundo são tudo um monte de
merda mesmo. É, merda! Merda é feita de átomos, né? A professora de química
deveria explicar essa merda pra gente.
Porra,
e lembra nas primeiras séries, quando tínhamos de fazer fila, rezar o Pai
Nosso, cantar o Hino, fazer desenho do dia do índio, fazer sabonete no dia das
mães? Quem não odiava aquela merda?!?!
E quem
não odeia a hora da chamada? Aquele barulho dos infernos, e aquela besta do
professor de inglês gritando nossos números!! Ah, que merda, eu sacaneio ele
sempre. Nunca respondo na hora certa, só pra ele ficar puto! É muito chato essa
merda toda. E quem não tem vontade de mandar aquela inspetora de merda pro
inferno, só vive atazanando.
E quem
nunca teve vontade de pular o portão da escola, e quem nunca pulou? Eu pulei.
Pulo o portão porque a escola é uma merda, cheia de professores merda, de
funcionários merda, de alunos mais merda ainda!
E a
merda da minha família não entende por que eu vou mal na escola, “vou mal
porque a escola é uma merda” eu digo pra minha mãe. E ela diz: “merda por que,
filhinho?” Bem, a escola é quase como um presídio. Você não tem liberdade de
nada, só pode obedecer. Não pode ouvir mp3, falar no celular, mandar vídeos de
gatinhas peladas, etc, dar porrada nos moleques retardados, pôr bomba no
banheiro, xingar aquelas putinhas, não tem bicicletário, não pode andar de
skate, tem que fazer umas merdas de desenho praquela bicha do prof. de educação
artística, ler aqueles textos idiotas de filosofia, não pode fumar, não pode
cabular, ir ao banheiro, sair mais cedo, porra, não fode, que merda!
Ah, e
a merda daquela “tiazinha” da secretaria, que praga dos infernos: recebe
dinheiro pra fazer um serviço boçal, que até quem nunca foi na escola consegue
fazer, e ainda trata mal as pessoas e faz tudo de má vontade, e no final, faz
errado! Ahh, que merda!
Sem
falar na comida da escola! Ave..... Quase vomito quando como aquela merda de
polenta mal-feita, aquele arroz-jesus-me-chama, aquele
bife-de-gato-mal-passado! É tudo uma merda, os Paulos Malufs da vida desviam
dinheiro e a gente tem que comer merda. Alguém me salve!
A
escola é um lugar de merda, não é? Bem, mas pelo menos tem umas gatinhas pra
gente xavecar. Pelo menos tem a professora de biologia, que é uma delícia,
apesar de chata. Tão novinha, peladinha deve ser linda... por que será que é
tão chata? Deve ter um namorado de merda... Deve ser professor também o
desgraçado.
Ah,
pelo menos ainda nos sobrou a quadra de futebol, que mesmo toda fudida, dá pra
gente disputar uns campeonatos. É divertido. Mas é pouco se você pensar
direito: passamos boa parte de nossa infância e adolescência num lugar de merda
desses... É triste na verdade.
Às
vezes fico pensando, será que só as escolas brasileiras é que são uma merda?
Acho que não. Nos States, primeiro mundo, a molecada fica tão de saco cheio da
merda da escola que de vez em quando leva umas metralhadoras bem fudidonas e
sai matando todo mundo. Gente doida, país de merda, não? Aqui no Brasil, que é
mais de merda ainda, é diferente, a gente prefere pixar as paredes, quebrar as
carteiras, os vidros, xingar as professoras, dar porrada nelas de vez em
quando, mas a gente não mata ninguém com metralhadora, né? Isto é tarefa da
polícia, não é verdade? Dessa polícia de merda....
E
esses polícias de merda estudaram nas mesmas escolas de merda que a gente
estuda. Será que tem a ver? E os outros bandidos também estudaram em escolas de
merda. Tem a ver? Talvez, tudo tenha a ver, talvez nada. O que eu tenho certeza
é de que esta escola é uma merda. Por quê? Porque eu não aprendo nada... Eu só copio.
quarta-feira, 22 de maio de 2013
Num futuro próximo...
Num futuro próximo...
Após registrar a presença de seus alunos em seu
diário de classe, o professor-filósofo pediu aos jovens que desligassem e
guardassem seus aparelhos celulares em suas mochilas. Alguns poucos o fizeram
imediatamente. Outros, a maioria, o fizeram somente depois de serem persuadidos
pela argumentação do professor: a simples presença do aparelho sobre a mesa
desvia a atenção dos alunos. Os demais, pouquíssimos, precisaram ser ameaçados:
“vou te mandar para a diretoria”, ou ainda, “vou pegar o seu celular que só
será devolvido a um de seus pais”.
Finalmente a aula foi iniciada. O professor-filósofo retoma a discussão
das últimas semanas “a natureza humana segundo Jean-Jacques Rousseau”. Dois
minutos depois, nota que um aluno já mexe em seu aparelho celular. O docente
decide não agir e esperar para ver o comportamento dos demais. Aos poucos, com
em uma epidemia, as mãos dos estudantes são tomadas pelos aparelhos. Em menos
de dez minutos, a grande maioria é contaminada.
O professor, então, decide romper seu silêncio e se pronuncia, movido por
um sentimento de obrigação: - Vocês realmente não conseguem, não é? Não
conseguem ficar dez minutos longe desse miserável aparelho eletrônico?
Há um silêncio imediato, seguido de olhares medrosos. Os alunos sabem que
desobedeceram a uma ordem e que podem ser punidos.
Um adendo. Não se assustem, caros leitores. Estes alunos estudam numa
escola severa, onde as leis, normas e regras são seguidas com extremo rigor, às
vezes até desnecessário. Lá as regras não são apenas um conjunto de palavras
impressas numa folha de papel, afixadas em uma das paredes da instituição. Lá
regra é regra. Seu não cumprimento é penalizado. Nesta escola, aluno bom é
aluno disciplinado. Dessa forma, os
alunos não têm a sensação de que podem tudo, ao contrário. Revoltam-se por não
poder nada. Escola certamente anacrônica. Noutra ocasião desenvolverei mais o
assunto.
O professor-filósofo tem níveis baixos de obsessão por punição. Curioso
por natureza, está mais interessado, por ora, em descobrir os motivos da dependência de
seus alunos pelos tais aparelhos de telefone celular. Indaga-os e ouve as mais
diversas respostas: “porque celular é legal”, “porque é importante para nos
comunicarmos com os outros”, “porque o celular tem várias funções: dá pra ouvir
música, assistir vídeos, entrar na internet, mandar mensagens, é da hora”,
“porque se minha mãe precisa falar comigo, ela me liga”, entre outras.
Como supunha, nenhum aluno cita as funções de pesquisa, de busca por
informações e conhecimento que um aparelho dessa espécie possui. Tampouco é
citada sua função de calculadora, que poderia ser valiosa nas aulas de
matemática ou física. As respostas restringem-se às funções de comunicação,
mas, sobretudo, de entretenimento.
Embora reconheça a importância do lazer na vida dos
adolescentes, isso ainda não explica tamanha dependência de um aparelho
eletrônico. Por alguns instantes, o professor-filósofo mergulha em pensamentos:
“por que tamanha obsessão por um celular? Serão as luzes piscantes, que
hipnotizam? Ou a tela, que deve ter algum brilho especial que vicia, será
possível? Será a câmera fotográfica? Ou a sensação de pertencimento ao grupo,
gerada pelo aparelho? Ou ainda o status: eu tenho um aparelho, sou legal.
Quanto mais caro meu celular, mais legal eu sou? Ou quem sabe a intimidade com
aparelhos dessa espécie, essa geração passou mais tempo com um celular do que,
provavelmente, com seus pais. Será isso?”
Eis que de repente, atordoado por suas meditações e sem
pensar nas conseqüências de suas palavras, o mestre profere a infausta
afirmação: - Eu não tenho um aparelho celular.
Breves segundos de silêncio. Os alunos se entreolham,
apavorados, terrificados. Surge um ânsia instantânea, coletiva: “Como?? Como pode?”, pensam, uniformemente.
A quem não presenciou a cena é praticamente impossível
descrever o que se sucedeu. Revolta, gritos, caos, desordem, indignação.
Harmonicamente, pensavam: “como pôde a natureza ter engendrado ser tão
excêntrico? Não há mais limites para a extravagância humana? Como ousa, uma
pessoa, um ser humano de carne e osso, sem celular? Impossível.”
E o professor, pego de surpresa, tenta se explicar. Utiliza seus melhores argumentos, mas ninguém o ouve. Vocifera, esbraveja,
e quanto mais tenta, mais ensandecida fica a turba. Por fim, bate o sinal.
A aula termina. Sai da sala aliviado por ainda estar vivo.
No caminho para casa, os rostos de repulsa voltavam-lhe à
mente, a todo instante. Não conseguia esquecê-los. Brota-lhe, de repente, uma estranha ideia: escrever os
seus argumentos contrários ao celular e lê-los para a turma na próxima aula.
“Vou mostrar para essa molecada que a vida é muito mais que um aparelho
eletrônico”, pensou.
Assim, elaborou uma lista com suas razões, intitulada: 27
motivos para não se ter um celular. Fez o melhor que pôde, utilizando a
linguagem dos jovens para que o entendessem. E na semana seguinte, quando
retornou àquela turma, retomou a discussão. Sabichão, sacou de sua pasta seu
digníssimo texto, que leu em voz alta para os jovens.
27 motivos para não se ter um celular.
1º Você não gastará dinheiro com um aparelho. E não gastará dinheiro
com outro aparelho daqui há alguns meses, quando o seu atual quebrar ou se
tornar ultrapassado.
2º Você não gastará dinheiro com planos mirabolantes das empresas
telefônicas.
3º Você não contribuirá com as empresas telefônicas, claramente
desonestas, que prometem planos mirabolantes e não cumprem.
4º Você não ficará nervoso após horas e horas de espera tentando
cancelar seus planos mirabolantes.
5º Você não terá que desligar o seu celular ao entrar no cinema,
teatro, etc..
6º Você não atrapalhará as pessoas no cinema, teatro, etc, por ter se
esquecido de desligar o seu celular.
7º Você não atrapalhará a aula atendendo aquela ligação
“importantíssima”.
8º Você não incomodará o sossego de ninguém no transporte público por
discutir a relação com seu/sua amado(a) via celular.
9º Você não incomodará ninguém no transporte público, ou mesmo em
outros espaços públicos, ouvindo no alto falante de seu celular aquela música
que só você acha legal.
10º Nunca ninguém ficará zangado com você pelo fato de você ter
esquecido o celular desligado.
11º Você nunca precisará procurar um lugar para recarregar a bateria
do seu celular.
12º Você não precisará procurar um lugar para por crédito no seu celular,
nem deixará as pessoas da fila da lotérica, da farmácia, da PQP nervosas pela
demora na compra dos benditos créditos de celular.
13º Você nunca colocará a sua vida, e as de outras pessoas, em risco,
ao dirigir falando no celular, ou dirigir escrevendo mensagens SMS.
14º Você nunca ficará preocupado se alguém “está de olho” no seu
celular “novinho”.
15º Você nunca ficará preocupado em perder seu celular “novinho”.
16º Você não sofrerá assaltos por conta do seu celular. Sua vida não
estará em risco por conta desse ridículo aparelho eletrônico.
17º Você nunca ficará desesperado se o seu aparelho for furtado ou
perdido.
18º Você nunca ficará desesperado por ter perdido TODOS os milhares de
contatos da agenda do seu celular roubado ou perdido.
19º Você nunca vai pisar num cocô de cachorro porque estava andando
enquanto escrevia uma mensagem SMS (e
nenhum outro acidente idiota deste tipo, vai dizer que não acontece?).
20º Você não ficará ansioso se a bateria do seu celular estiver
acabando e você estiver esperando uma ligação importante.
21º Você nunca se julgará um “idiota” por ter ido viajar e ter
esquecido o carregador da bateria do seu celular.
22º Você não estará sempre “disponível”, isto é, ligado o tempo todo
ao resto do mundo (privacidade é bom de vez em quando).
23º Você nunca se sentirá um “otário” por ter comprado um aparelho que
não funciona conforme o prometido. Nem vai perder tempo tentando aprender a
utilizar aquelas funções mirabolantes do seu celular “novinho”.
24º Você nunca irá usar seu celular para tirar aquelas fotos ridículas
na frente do espelho, em que se faz biquinho, ou qualquer outro tipo de pose
idiota, que só você acha sexy.
25º Você
nunca irá deixar a pessoa com quem você está conversando te esperando enquanto
você responde aquele SMS “importantíssimo”.
26º Você nunca deixará de prestar atenção em algo importante por estar
com os olhos grudados no seu celular.
27º Você nunca se viciará no seu celular, ou nas tranqueiras coloridas
e barulhentas que ele pode te proporcionar. Enfim, você terá mais tempo para
viver.
Ao final da leitura, a maioria dos alunos estava com cara de tédio.
Alguns bocejavam, outros checavam seu celular. Outros olhavam para o vazio,
pensando em como seria estar em casa, desfrutando de sua cama e de seu travesseiro.
Apenas uma garota, uma quieta porém perspicaz menina da primeira fila, olhava
com astúcia para o mestre.
A princípio, o professor-filósofo não entendeu a reação da classe. Tinha
certeza que seu texto criaria novo tumulto, revoltas ainda mais tempestuosas.
Ele até tentou estimular a turma, provocando-os com novos questionamentos sobre
o assunto. Hoje estava pronto para briga, tinha certeza que ninguém o venceria.
Em vão. “Venceu” por W.O..
No caminho de volta para casa, pensando em toda a
situação, concluiu: “essa é a geração do tédio, e não do celular. Não se motivam por ideias, não se apegam racionalmente às coisas, são basicamente seres
pulsionais. Vão da euforia à indiferença, da inação à hiperatividade
velozmente. Mas nada lhes pertence. Surpreendem-se com o diferente, é verdade,
revoltam-se até. Mas é tudo instintivo, tudo efêmero e descartável. Só o tédio lhes é visceral.” Então, lembrou do rosto da garota quieta e perspicaz. Seu olhar
tinha um brilho de inconformidade, uma luz que irradiava discórdia, ainda que
contidamente. Por fim, o professor-filósofo sorriu. “Nem tudo está perdido”.
terça-feira, 14 de maio de 2013
Seu Seleno
Seu Seleno
O assunto mais recorrente na sala dos professores, durante os intervalos principalmente, é o comportamento dos alunos. Fala-se sobre indisciplina, falta de educação e desinteresse discentes. Culpabiliza-se, geralmente, a “família”, instituição julgada como entidade metafísica, universal, onisciente e onipotente. Atribui-se a ela, ou melhor, à “recente” perda de seus poderes divinos, o fracasso dos alunos, tanto do ponto de vista pedagógico, quanto do comportamental. Contudo esta não é a única explicação. Também os alunos, seres dissimulados, senhores de si, indivíduos maduros e responsáveis, que estão na escola sei lá fazendo o que, diante de tal nível de desenvolvimento, são responsabilizados pelo seu fracasso. Em resumo, a lógica do sucesso e do fracasso impera no árido solo da pedagogia brasileira.
Mas este não era o caso da Escola Estadual Prof. Judas Iscariotes de Oliveira. Pelo menos não nas últimas semanas. A recente chegada de seu Seleno, funcionário da Diretoria de Ensino designado para a função de Agente de Organização Escolar, mexia com os instintos especulativos do corpo docente. Os motivos: seu Seleno não tinha “perfil” para trabalhar como inspetor de alunos.
Chegaram a essa conclusão logo em sua primeira semana de trabalho. Nos três primeiros dias, seu Seleno chegou atrasado. Deveria apresentar-se na escola às 6:40, arrumar-se rapidamente, e abrir o portão para a entrada dos alunos, às 6:50. No primeiro dia chegou às 7 horas, atrasando a entrada. No segundo dia, conseguiu chegar às 6:50, o que também descumpria as ordens da diretora. No terceiro, voltou a chegar às 7 horas.
O assunto mais recorrente na sala dos professores, durante os intervalos principalmente, é o comportamento dos alunos. Fala-se sobre indisciplina, falta de educação e desinteresse discentes. Culpabiliza-se, geralmente, a “família”, instituição julgada como entidade metafísica, universal, onisciente e onipotente. Atribui-se a ela, ou melhor, à “recente” perda de seus poderes divinos, o fracasso dos alunos, tanto do ponto de vista pedagógico, quanto do comportamental. Contudo esta não é a única explicação. Também os alunos, seres dissimulados, senhores de si, indivíduos maduros e responsáveis, que estão na escola sei lá fazendo o que, diante de tal nível de desenvolvimento, são responsabilizados pelo seu fracasso. Em resumo, a lógica do sucesso e do fracasso impera no árido solo da pedagogia brasileira.
Mas este não era o caso da Escola Estadual Prof. Judas Iscariotes de Oliveira. Pelo menos não nas últimas semanas. A recente chegada de seu Seleno, funcionário da Diretoria de Ensino designado para a função de Agente de Organização Escolar, mexia com os instintos especulativos do corpo docente. Os motivos: seu Seleno não tinha “perfil” para trabalhar como inspetor de alunos.
Chegaram a essa conclusão logo em sua primeira semana de trabalho. Nos três primeiros dias, seu Seleno chegou atrasado. Deveria apresentar-se na escola às 6:40, arrumar-se rapidamente, e abrir o portão para a entrada dos alunos, às 6:50. No primeiro dia chegou às 7 horas, atrasando a entrada. No segundo dia, conseguiu chegar às 6:50, o que também descumpria as ordens da diretora. No terceiro, voltou a chegar às 7 horas.
A diretora, insatisfeita com a situação, sabia que se seu Seleno não
abrisse o portão no horário, os alunos entrariam atrasados, o que prejudicaria
a primeira aula da manhã. A escola não dispunha de outro funcionário para
cumprir essa função, seu Seleno vinha, especificamente, para ficar no lugar de
dona Aurora, antiga inspetora que acabara de se aposentar. Assim, a diretora
chamou o recém-chegado para uma séria conversa. Após a exposição dos fatos e de suas
conseqüências, que seu Seleno mal ouviu, pois pensava no jogo de futebol que
ocorreria naquela quarta, à noite, a fina senhora exclamou: – Portanto, se você
voltar a se atrasar, eu vou até a Diretoria de Ensino pedir a cessação da sua
designação! – A rispidez da voz e a fúria no olhar da diretora trouxeram seu
Seleno de volta à realidade. Não se explicou, apenas respondeu: - Dona
Diretora, isso não vai voltar a acontecer!
Seu Seleno era lento no andar, seus pés sexagenários doíam quando
caminhava, atrapalhando a agilidade que outrora tivera. Gabava-se, inclusive,
de ter sido “jogador” de um clube do interior de São Paulo na juventude. Um
“beque dos bons” dizia, que teria até mesmo enfrentado Pelé num jogo válido
pelo Campeonato Paulista, no início dos anos 70. Além da dor, e das míticas
histórias contadas ao colegas de bar, havia sua condição financeira precária e
o descaso consigo próprio. Ambos impediam que o homem procurasse um médico para
examiná-lo. Morava só, numa modesta casinha na periferia de São
Paulo, há cerca de três quilômetros da escola em questão. Não tinha amigos,
apenas “conhecidos” na região.
Decidiu que na manhã seguinte
pegaria um ônibus ao invés de caminhar, mesmo que isso ocasionasse importante
diferença em seus rendimentos mensais. Mas ponderou: “melhor ir de ônibus e
continuar trabalhando, do que perder o trabalho e ficar mais fodido ainda de
grana. É, melhor mesmo...”. Por fim, passou a chegar no horário, atrasando-se
mais raramente.
Os atrasos não eram os únicos obstáculos de seu Seleno na função. Todos
consideravam-no figura repugnante. Primeiro pelo aspecto físico: um homem de
sessenta e poucos anos, banguela, careca, de olhos ligeiramente esbugalhados e
volumosa barriga. A isso, acrescente-se roupas sujas, fedidas e rasgadas, como
uma camisa do Corinthians comprada provavelmente num camelô na década de 90, e
o odor quase natural de cachaça que exalava, gerado não só pelas doses do
desjejum, como também pelos grandes goles ingeridos à noite, antes de cair no
sono. A idade, o cansaço e sobretudo as noites de pouco sono davam-lhe grandes
olheiras, que contribuíam para sua feiúra.
Além do aspecto, também julgavam-lhe mal pelo modo peculiar no trato com
as pessoas. Por exemplo, aos alunos que dele zombavam, respondia com - Vai pra
puta que pariu, filho de uma quenga véia! – A frase, repetida incansavelmente
com voz ligeiramente rouca e vacilante, revelava um estado crescente de
senilidade, o que divertia os alunos mais sádicos. Estes, engajavam-se em criar
novos apelidos para o velho. – Esse é da hora, rárárá, o véio doidera vai ficar
muito puto!
Tratava distintamente professores e professoras. Com os homens, esforçava-se para ser amigável, contando-lhes piadas e “causos” antigos. Com as professoras, era galante e gentil, - É assim que a gente tratava as mulheres antigamente – contava aos colegas do sexo masculino. Por vezes, e preferencialmente às professoras mais velhas, soltava alguns elogios, que eram imediatamente rechaçados com olhares de reprovação, “Se toca, velho fedido”, pensavam algumas.
Tratava distintamente professores e professoras. Com os homens, esforçava-se para ser amigável, contando-lhes piadas e “causos” antigos. Com as professoras, era galante e gentil, - É assim que a gente tratava as mulheres antigamente – contava aos colegas do sexo masculino. Por vezes, e preferencialmente às professoras mais velhas, soltava alguns elogios, que eram imediatamente rechaçados com olhares de reprovação, “Se toca, velho fedido”, pensavam algumas.
Mas seu Seleno não tinha
intenção de amizade, amor ou sexo. Seguia um protocolo de educação básica que
aprendera há algumas dezenas de anos. A escolha pelas mais velhas, por exemplo,
baseava-se na crença de que elas entenderiam este protocolo. Tinha uma mente
antiga, valores e costumes antigos.
Não se incomodava com os
juízos negativos dos colegas de trabalho. A propósito, fechara-se de tal modo
para essa espécie de crítica que elas simplesmente pareciam não existir. Era,
por esse e outros motivos, ser extremamente alegre, sorridente. Sempre a
cantarolar melodias de Nelson Gonçalves e Ataulfo Alves. Divertia a criançada
da escola dançando comicamente enquanto entoava as canções. Não partilhava
daquilo que costumeiramente chamamos de “bom senso”, ou ainda, “senso de
ridículo”. Há tempos abandonou a capacidade de se auto-envergonhar, conquista
potencializada pelo alcoolismo.
Como dito acima,
transformou-o em pessoa mais comentada na sala dos professores, durante o
intervalo. As professoras, em especial, riam de seu jeito extravagante,
deploravam seu fedor, suas roupas sujas e rasgadas, reclamavam de seus
galanteios e dos xingamentos proferidos aos alunos. Especulavam se não tinha
esposa, se morava sozinho, se tinha parentes próximos, enfim, algo que se possa
chamar de família. - Como uma pessoa chega a tal estágio? – Indaga uma. –
Excesso de pinga – responde outra.
Os professores são mais
complacentes. Há alguns que até simpatizam com seu Seleno, mas não manifestam
publicamente esse afeto. Comentam suas piadas, seus jargões, seus
“causos”. Chegaram inclusive a
pesquisar nos sites futebolísticos da internet, se seu Seleno fora realmente
jogador de futebol. Nada encontraram.
O que ninguém sabe, ou
desconfia, é que Seleno foi casado, e teve um filha, falecida aos 10 anos,
vítima de um tumor no cérebro. A perda da garota, considerada por tempos, pelo
pai, alegria e razão de sua vida, deixou uma marca incurável em sua alma.
Tentou afogar essa perda com o álcool. Nada feito. Perdeu a esposa, sucessivos
empregos, a dignidade. Por anos, viveu nas ruas, a esmo, perambulando. Tateava
um novo sentido para sua mal-tratada existência, mas esbarrava sempre na
memória da filha perdida. Abandonado pelos amigos, pelos poucos parentes
próximos, seu Seleno passou a mendigar, ou a fazer serviços braçais em troca de
cachaça. Pouco comia. Sempre se embriagava. Mas a filha morta nunca voltava.
Por fim, entendeu que a morte é eterna.
Aos poucos e muito
lentamente, se refez. Tijolo por tijolo, construiu uma poderosa muralha mental
contra tudo que lhe era nocivo. Nada mais o afetava, a não ser as crianças, que
de um modo geral, encarnavam a figura da filha. Nunca foi capaz de se
imunizar contra os choros e os sorrisos, os insultos e elogios, as tristezas e
alegrias das crianças. Através delas, sentia-se ligado à querida filha perdida.
Seu Seleno se reergueu.
Demorou, mas acabou por encontrar paz interior e a vontade de seguir a vida.
Decidiu que até o fim trabalharia em escolas, para estar sempre próximo às crianças. Conseguiu trabalho numa Diretoria de Ensino, contratado como ajudante
de serviços gerais. Prestava serviços de manutenção dentro das escolas. Durante
alguns anos, desempenhou bem a função. Até que prestou concurso para agente de
organização escolar. Ficou mal-classificado, mas acabou sendo chamado, devido
ao excesso de vagas e à rotatividade das pessoas no cargo, talvez devido à
natureza do trabalho (vigiar os alunos) e ao salário miserável.
Seu Seleno passou por
diversas escolas, mas seu temperamento desleixado não o permitia ficar por
muito tempo em nenhuma delas. As pessoas se irritavam, e ele era “devolvido” para a
Diretoria de Ensino, que o empurrava para alguma outra escola que reclamava por
falta de funcionários, fato bastante comum nas escolas paulistas. Acabou
passando um tempo mais prolongado nessa escola, pois, ainda que fosse
desmazelado, cumpria sua função.
Nunca esqueceu sua filha, logicamente, mas voltou a
ser o espírito alegre de tempos antigos. E apesar dos pesares, é possivelmente
a pessoa mais feliz com seu trabalho lá. O baixo salário não é
tão relevante. E ao contrário dos professores, dos demais funcionários da
escola, da direção e até mesmo dos próprios alunos, sente prazer infindável em contemplar
o sorriso das crianças, que, como pensa, é “a coisa mais pura e bonita do
universo”. É o que lhe vale. terça-feira, 7 de maio de 2013
Qual é o sentido disso?
Qual é o sentido disso?
O barulho irritante do despertador acorda o
professor-filósofo para mais um dia de trabalho. Trágica rotina.
Professores-filósofos detestam acordar cedo. Daria tudo para continuar dormindo
até às dez, quando os raios solares penetrariam as frestas da janela de seu
quarto, acordando-o naturalmente.
Mas levanta-se, morosamente, cambaleante, e sem pensar. Veste-se e
abandona o quarto o mais rápido possível, para não ceder à tentação do sono.
Come sem vontade, fazendo enorme esforço mental para resgatar as agradáveis
imagens do sonho há pouco interrompido. Tenta juntar os fragmentos, atribuir
algum sentido àquelas visões estilhaçadas de suas experiências passadas. Acaba
distraindo-se com a sensação arrebatadora de sono. Deixa a casa.
Vai caminhando ao trabalho, refletindo sobre a existência, seus projetos
e conquistas. Em sua mente toca uma canção antiga, acolhedora e melancólica,
que dá tom ao seu estado de ânimo. - Only the lonely, only the lonely! -
repete seguidamente. Aperta o passo
para não se atrasar.
No portão da escola, encontra a coordenadora-pedagógica. Sua voz rouca
grita aos alunos: - Mais rápido, andem mais rápido que o portão vai fechar! -
Cumprimentam-se com certa afabilidade.
Na sala dos professores pega o seu material: diários, livros, giz. Fala
“bom dia” a alguns, ignora outros sem motivo, a não ser por sua timidez inata.
Olha ao redor, a sala é ampla, mas os professores estão espalhados, embora agrupados estranhamente, por idade, gênero e disciplina que lecionam. Conversam
sobre banalidades, como os acontecimentos do fim de semana, os resultados do
futebol, ou a entrevista da celebridade x no programa televisivo y.
Assoberbado, evita participar de conversas dessa natureza. “Que gente besta”,
pensa.
O seu caminhar em direção à sala de aula é atrapalhado por diversos
alunos que brincam, se batendo e se empurram, gritando e gargalhando. Isto traz
lembranças imediatas ao professor-filósofo, lembranças de seus tempos de
juventude. Acaba por considerar seus alunos exageradamente infantis.“Será que
quando eu era moleque eu era tão bobo assim e não sabia? Todo mundo já foi bobo
um dia. Mas eu não era bobo assim. Nem fudendo!”.
Na sala de aula, a rotina diária se repete. - Pessoal, atenção à chamada,
silêncio por favor. – A seguir, números ditos em voz alta misturam-se a demais
vozes que não cessam, bocas que não se calam, ruídos que não findam. “Há
sentido nessa merda? Por que continuar com isso? Não dá pra ser diferente”,
pensa, enquanto continua chamando os alunos e registrando a presença no diário.
Terminada a “chamada” a aula se inicia.
O plano de aula é o de entregar as provas corrigidas, mostrar quais as
respostas certas e porque os alunos erraram tantas questões. Pretende ainda
discutir mais aprofundadamente os resultados e orientá-los para que o
mesmo não se repita no futuro próximo.
Entretanto, tem consciência de que esse plano de aula não faz sentido. O motivo
principal: a prova foi aplicada há mais de um mês, e os alunos já não lembram
mais do texto, tampouco das questões. O professor justifica-se propondo um
problema matemático aos jovens: - Tenho mais de quatrocentos alunos. Levo cerca
de cinco minutos para corrigir cada prova. Qual é o tempo total, em horas, para
a correção?
Alguns quebram a cabeça, utilizando seus idolatrados aparelhos
eletrônicos inúteis para resolver a questão. O professor-filósofo zomba deles:
-Vocês são escravos de objetos fúteis. É a mente que opera os instrumentos e
não o seu contrário. Primeiro desenvolvam suas mentes. Depois, utilizem seus
instrumentos. - O professor-filósofo tem certeza de que os jovens não
entenderam sua crítica, julgando-a como um simples sermão, ou pior, reles
rabugice de velho. Mas dá de ombros.
Por fim, chegam ao resultado: cerca de trinta e três horas foram
necessárias para a correção dessas provas. O professor termina seu argumento,
com mais uma equação matemática: - Considerando que o governo me paga apenas
duas horas semanais para eu trabalhar em casa, em quantas semanas eu deveria
ter que devolver essas provas corrigidas para vocês, sem ter de trabalhar de
graça? – Agora as respostas vêm com maior rapidez. O professor-filósofo
resmunga mais algumas palavras contra o sistema de ensino. Mas logo para,
quando percebe que os alunos não estão interessados em saber disso.
A prova aplicada há um mês consistia em cinco questões de interpretação
sobre trecho da Ética a Nicômaco de Aristóteles. O texto fora lido e relido em
sala de aula, interpretado minuciosamente em trabalho coletivo entre os jovens
e o professor-filósofo, e para surpresa do mestre, os resultados da avaliação demonstram
que o texto não havia sido compreendido pela maioria dos alunos. Cerca de
quarenta por cento dos alunos tiveram notas abaixo da média. Cinqüenta por
cento tiveram notas iguais ou um ponto superior à média, que é cinco. E somente
dez por cento, isto é, quatro alunos, tiveram notas consideradas satisfatórias
pelo professor.
Enquanto mostrava quais eram as respostas corretas para as questões, e
tentava encontrar os motivos para tantos erros, sentia no olhar dos jovens
desdém, desprezo, uma certa arrogância. “Isso não faz sentido”, pensava. “O que
faz então? Nada faz sentido a esses garotos. A não ser celulares e outras
quinquilharias eletrônicas, a aparência física, o futebol e a música a outras.
E de nada adianta desconstruir esse jeito de ser: adolescentes dificilmente
admiram-se com a consciência de sua idiotice”.
Apesar do desinteresse pelas “respostas certas”, os jovens esperam
avidamente pelas provas corrigidas. Não porque pretendiam reavaliar o que não
aprenderam, mas pela expectativa de saber a sua nota, valor numérico gravado
geralmente no canto superior direito da folha de prova com caneta esferográfica
vermelha. Por alguns segundos o professor tenta definir mentalmente o conceito
de “nota”: “símbolo, alegoria, metáfora, que designa a ‘virtude’ de um aluno em
desempenhar uma tarefa por intermédio de um valor numérico dado dentro de uma
escala de zero a dez”.
O professor-filósofo pensa na ineficácia desse método, pois estimula tão
somente a valoração por intermédio de escalas numéricas. “Desse jeito as
pessoas têm um valor, de acordo com suas habilidades em desempenhar tarefas. Em
última análise, esse sistema não se difere do sistema capitalista, pois acaba
por determinar que os seres humanos diferenciam-se de acordo com o valor de
mercado que têm. Produzimos objetos para nosso consumo, mas no fundo, também
somos objetos de consumo, etiquetados com um preço, o que alguns chamam de
salário”.
Todo esse devaneio se dá durante o processo mecânico e interminável de
explicar os argumentos de Aristóteles presentes no texto. Tudo se repete na
próxima aula, e de novo, nas demais aulas do dia, seis no total. Pouco muda
entre uma turma e outra. Alguns alunos são mais simpáticos e falastrões, outros
menos. Mas a dinâmica, as relações, o desprezo pelo conhecimento e ânsia pelos
resultados é a mesma.
O professor-filósofo deixa a escola extenuado. Ao
pisar fora do edifício, o sono retorna, de imediato. A fome, até então
adormecida, acorda para revirar-lhe o estômago. Only the lonely volta a
tocar em sua mente, e uma questão insiste em atormentar-lhe: “faz sentido
continuar com isso?”.Sejam bem-vindos!!
Olá. Meu nome é Isaac Vieira da Silva, tenho 31 anos e sou professor de filosofia da rede estadual de São Paulo. Atualmente, faço mestrado em filosofia na USP, onde estudo a obra pictórica de Jheronimus Bosch. Além disso, toco numa banda de rock chamada Traumas e sou casado com a Michelle, minha amada e querida companheira. Temos dois filhos: uma canina chamada Layla e um felino chamado Sig.
Desde que comecei a dar aula na escola pública, em agosto de 2005, tive vontade de escrever textos narrando minhas experiências. A escola, com suas práticas, seus habitantes, e o mais importante, com todo o conhecimento que ela produz (ou deveria produzir), sempre me encantou. Tanto que nunca consegui me desligar dela... Há quase trinta anos freqüento diariamente instituições de ensino, em todos os seus níveis.
Como dizia, sinto uma necessidade crescente, quase que uma obrigação, de narrar, pensar, discutir a escola e suas práticas. Mas não com o enfoque acadêmico, rigoroso e engessado. Quero mostrar as vísceras da escola e de suas personagens, suas contradições, angústias, anseios, dar voz a professores e alunos, denunciar práticas abusivas, louvar ações positivas. Enfim, objetivo refletir sobre as práticas de ensino, indagar sobre os métodos de avaliação, mas sem esquecer do caráter humano, dos sentimentos e afetos que permeiam as instituições escolares. Para tal, o farei através de narrações, nunca dissertações, misturando realidade e ficção, experiências verídicas e inventadas, reflexões próprias e de outros...
Tentarei escrever ao menos um texto por semana, no contra-turno dos meus estudos e trabalho, algo como um hobby sério. É também uma tentativa minha de por fim a esse vício alienante chamado facebook.
Bom, divirtam-se.
Aguardo críticas.
Obrigado.
Desde que comecei a dar aula na escola pública, em agosto de 2005, tive vontade de escrever textos narrando minhas experiências. A escola, com suas práticas, seus habitantes, e o mais importante, com todo o conhecimento que ela produz (ou deveria produzir), sempre me encantou. Tanto que nunca consegui me desligar dela... Há quase trinta anos freqüento diariamente instituições de ensino, em todos os seus níveis.
Como dizia, sinto uma necessidade crescente, quase que uma obrigação, de narrar, pensar, discutir a escola e suas práticas. Mas não com o enfoque acadêmico, rigoroso e engessado. Quero mostrar as vísceras da escola e de suas personagens, suas contradições, angústias, anseios, dar voz a professores e alunos, denunciar práticas abusivas, louvar ações positivas. Enfim, objetivo refletir sobre as práticas de ensino, indagar sobre os métodos de avaliação, mas sem esquecer do caráter humano, dos sentimentos e afetos que permeiam as instituições escolares. Para tal, o farei através de narrações, nunca dissertações, misturando realidade e ficção, experiências verídicas e inventadas, reflexões próprias e de outros...
Tentarei escrever ao menos um texto por semana, no contra-turno dos meus estudos e trabalho, algo como um hobby sério. É também uma tentativa minha de por fim a esse vício alienante chamado facebook.
Bom, divirtam-se.
Aguardo críticas.
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