quinta-feira, 14 de maio de 2015

Tic-tac

Tic-tac

Tic-tac. Mal nasceu o dia, Fulano já estava de pé, se aprontando. Deixava a roupa separada na véspera parar ganhar tempo de sono. Minutos preciosos dentro do mundo onírico, a única fantasia de sua vida. Além disso, tinha o corpo: quando dormia menos de seis horas sentia um cansaço sobrenatural em sua jornada. Por isso calculava seu tempo, tinha um cérebro matemático que, infelizmente, já não funcionava com tanta precisão. O relógio de pulso era companhia indispensável para controlar suas pequenas ações diárias. Cinco minutos para as necessidades fisiológicas. Sete minutos para o banho, incluindo o barbear-se. Três minutos para vestir-se. Dezoito minutos para preparar o café e comer. Três minutos para cuidar de seu gato. Tic-tac.

Sabia que não podia contar com imprevistos. O elevador, por exemplo, podia demorar de zero a sessenta segundos para chegar. A caminhada até o ponto de ônibus levava dois minutos. Já o ônibus passava num intervalo de tempo que geralmente estava compreendido entre às 6:20 e 6:24. O percurso até a escola era de vinte e cinco minutos, geralmente. Fulano é formado em Física. Leciona, no período da manhã, para turmas de Ensino Médio em uma escola da zona central de São Paulo. À tarde, atravessa a cidade para chegar a uma outra escola, agora de Ensino Fundamental, onde dá aula de Ciências. Seus cálculos o colocavam no seu destino com uma breve folga. Geralmente dez minutos era a sua margem de segurança. Odiava se atrasar. 

Esse tempo extra lhe permitia fazer de modo relaxado os pequenos rituais pré-trabalho: lavar as mãos, sujas por compartilhar o transporte público com outras centenas de pessoas, vestir seu avental, organizar seus diários de classe, selecionar os gizes e caminhar até à sala. Tic-tac. Às 7:00 estava de pé, frente à porta. Com freqüência chegava um ou dois minutos antes do horário. Nunca se atrasava. Apagava a lousa, posicionava o giz, esperava os alunos sentar. Nessa hora faziam pouco barulho. Todos tinham sono. Fazia a chamada e então começava a falar. Já não tinha a mesma paixão de quando começara, há quinze anos. Sua vitalidade enfraquecia com o passar do tempo. 

Logicamente, o tempo da aula era todo calculado. Cinco minutos para a chamada e organização da sala, trinta minutos para explicar a matéria, o restante, para as dúvidas. Eventualmente, e mesmo que acreditasse ser Cronos, ou seu filho legítimo, faltava-lhe tempo para cumprir estas etapas. Não entendia como e matutava: “para onde foi esse tempo, que eu não percebi passar? Ando muito distraído, o que pode ser? Já não controlo mais meu tempo?”, questões que o perturbavam, mas não o suficiente para desviá-lo de seu foco, as aulas. Considerava-se um professor exemplar, muito comprometido.

Repetia o mesmo ritual mais cinco vezes no período da manhã. Mas nem sempre os alunos eram silenciosos. Quase nunca, na verdade. Almoçava na escola. Era uma comida ruim, sem sal, mas isso também não importava muito. O importante era o tempo que ganhava com a tarefa, pois a comida já estava pronta, era só por no prato e devorar. A fome, após seis aulas, era imensa, comia com pressa e então descansava por dez minutos. Escovava os dentes e seguia para o ponto de ônibus. No percurso, corrigia trabalhos e provas Tempo precioso. 

Tic-tac. À tarde, ficava extenuado. Lidar com seres humanos na puberdade não é tarefa das mais fáceis. Utilizava também o tempo do intervalo do período da tarde, vinte minutos, para as tarefas de correção e freqüentes burocracias. Fulano pouco falava com seus colegas de trabalho, era tímido, e ao mesmo tempo, prepotente, considerava-os, em sua maioria, completos idiotas. Saía da escola às 18:50. Viajava de ônibus de volta para casa. Geralmente de pé, amassado por outros passageiros, e sofrendo a cada freada brusca do motorista.

Morava só. Tinha 40 anos. Teve um companheiro certa vez. Moraram juntos três anos. Não funcionou. Cada um tinha um ritmo, um tempo diferente. Fulano, apesar de todo o amor que sentia por Sicrano, acabou achando melhor se separar. Sofria muito. Agora, pouco pensava em Sicrano. Aliás, evitava os sentimentos. Era como máquina.

Certo é que sua experiência vinha lhe possibilitando uma diminuição no tempo gasto com o trabalho. Já não planejava mais aulas. Depois de quinze anos lecionando a mesma matéria, dominava todos os conteúdos, que pareciam fluir naturalmente de sua boca. Suas provas eram basicamente as mesmas, sempre. Alterava apenas os valores dos enunciados. Fazia tudo calculado. Não podia perder tempo. Tic-tac.

Em casa, após o longo dia de trabalho, Fulano descansava na frente da TV. Agora, o tempo já não lhe importava. Aliás, utilizava essas horas sobressalentes para recuperar-se dos gritos, dos desmandos, das respostas atravessadas, da algazarra vivida ao longo do dia. “A cada ano, as salas estão mais lotadas e os alunos piores. Será que conseguirei me aposentar com saúde?”, pensava. 

Recolhia os cacos do seu ser, tentava restabelecer alguma ordem e ter uma pequena sensação de paz através da TV. Assistia muito a programas de perguntas e respostas, quizzes de conhecimentos gerais. Assistia-os até em outras línguas, em canais estrangeiros, se necessário. Era muito bom nisso. Às vezes assistia a filmes policiais, com roteiros complexos, com deduções e investigações nebulosas. Eram seus preferidos.

Tinha poucos amigos. Tinha pouco dinheiro. Seu salário proporcionava-lhe uma vida medíocre. Mas Fulano não reclamava, não fazia planos para o futuro. Vivia o presente, o eterno presente, repetidamente, como um relógio.